Universidade da Califórnia oferece-nos a música e o quotidiano de há um século

Há dez anos a Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, começou a digitalizar o seu arquivo de cilindros. Música e gravações amadoras de todo o mundo, da passagem do século XIX para o XX, agora disponíveis para todos ouvirem

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Os cilindros foram o formato pioneiro de registo sonoro DR
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Fonógrafo de Edison DR
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Thomas Edison DR

É todo um mundo que se abre perante nós. Um mundo de sons tão distante, porque nos chega de muito longe no tempo, e tão próximo, porque a voz humana dilui quaisquer distâncias e porque os instrumentos que ouvimos, o piano, o violino ou o banjo, não são particularmente alienígenas.

Na Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, há uma equipa liderada por David Seubert que há dez anos decidiu partilhar a riqueza que vinha acumulando desde 1970.

Desde Outubro, uma colecção de dez mil cilindros, o formato pioneiro de registo sonoro, reproduzível no fonógrafo que Thomas Edison patenteou em 1877, está disponível para audição e download. Navegar pelo site criado para o efeito é uma experiência musical e social impressionante. Podemos ouvir a grande actriz francesa Sarah Bernhardt, uma das maiores estrelas mundiais no seu tempo, interpretar alguns textos com toda a sua riqueza dramática. Podemos ouvir música tradicional irlandesa com o violino em rodopio, ou o mítico Caruso encher os pulmões de ar para mostrar o seu virtuosismo. Descobrem-se misteriosas canções taitianas, o ritmo sincopado do ragtime, blues antigos mesmo antigos, valsas do centro da Europa e tangos argentinos. Ouvimos o que era a música nas mais diversas geografias quando o século XIX se despedia e quando despontava o século XX.

“A colecção começou por se concentrar na música popular americana”, explica ao PÚBLICO David Seubert. “Com o tempo, porém, cresceu até se tornar uma colecção global. Não vemos qualquer necessidade de reduzir o âmbito da colecção a uma geografia ou estilos musicais particulares. Temos uma grande colecção de cilindros franceses, ingleses, alemães, argentinos, mexicanos”. Não só. “O ano passado tivemos uma doação de uma dúzia de cilindros portugueses, os primeiros da nossa colecção”.

Quando abordámos David Seubert para uma entrevista sobre o arquivo, os registos portugueses estavam entre os cinco mil que ainda aguardam digitalização através “de uma máquina francesa, o Archeophone, que torna possível reproduzir os cilindros sem os danificar”. Brevemente, porém, vamos poder ouvi-los.

“Depois de me contactarem, falei com a minha equipa e estamos a trabalhar na sua digitalização”, revela.

O que se ouvirá ali? O motor de pesquisa do site devolve-nos nomes como o da cantora e actriz Medina de Sousa (Agulhas e alfinetes), do tenor Ladislau Albuquerque (Os meninos de Santo António) ou um Fado liro interpretado por Eduardo Barreiro e coro. A doação dos cilindros portugueses veio de Los Angeles e David Seubert acredita que se tratava de edições dirigidas aos imigrantes nacionais nos Estados Unidos. “Um dos planos de Edison era alimentar a procura das populações imigrantes, quer fossem polacos, judeus, portugueses ou mexicanos”, afirma.

O caso português
A realidade portuguesa, de resto, não seria a mais propícia à implantação do mercado de cilindros. Quando estes surgem, no final do século XIX, Portugal atravessava uma gravíssima crise económica. Quando os ventos de mudança subsequentes à implantação da República se fazem sentir, já estes sofriam a concorrência, que se revelaria letal, do gramofone e dos discos tal como hoje os conhecemos. “Só numa altura em que os discos já estavam bem implantados é que se conseguiu começar a fazer produção de cilindros em larga escala”, explica Susana Belchior, investigadora do Instituto de Etnomusicologia - Música e Dança, que estudou os cilindros e sua presença no território nacional no âmbito do projecto A Indústria Fonográfica em Portugal no Século XX (desse trabalho feito com outra investigadora, Leonor Losa, resultaria em 2013 o livro, assinado por Leonor, Machinas Fallantes - A Música Gravada em Portugal no início do século XX). Até aí, a gravação, acústica, fazia-se com o artista cantando frente aos cones do equipamento. “Não era possível fazer uma gravação de mais de seis, no limite, dez cilindros, de cada vez”. Ou seja, uma edição da mesma canção poderia ter várias versões diferentes, interpretadas pelo mesmo artista.

Boletins da Sociedade Industrial de Patentes Internacionais dão conta do interesse em incluir Portugal no mercado de empresas como, por exemplo, a Pathé e anúncios nos jornais provam que as editoras promoviam junto do público o seu produto. Mesmo quem não tivesse meios financeiros para adquirir um fonógrafo, usufruía dele. “Nas feiras haveria provavelmente os fonógrafos com moeda, muito comuns noutros países”. Ou seja, verdadeiros antepassados da jukebox popularizada décadas mais tarde. “E não eram obrigatoriamente de uma canção só. Alguns equipamentos tinham mecanismo para 10, 12 cilindros, possibilitando escolher a música que se queria ouvir.”

Da investigação resultou uma amostragem muito reduzida, de “algumas dezenas”, dos cilindros portugueses. Susana Belchior explica-o pela fragilidade do formato, bem como pelo facto de nem todos os responsáveis por diversos arquivos nacionais “estarem alerta quanto a este material”. A dificuldade em trabalhar a sua digitalização é outro factor contra a preservação deste património em Portugal. Com a instituição do Arquivo Fonográfico Nacional, plataforma ideal para um trabalho deste tipo, eternamente adiado pelos sucessivos governos, resta avançar com a catalogação do material e, a espaços, à sua digitalização através do Arquivo Fonográfico de Berlim. “Tendo uma instituição central, poderíamos ter um laboratório de som que fizesse esse serviço, podíamos ter curadores que dessem aconselhamento a outros arquivos, não necessariamente especializados em som, poderíamos reunir esforços e diluir despesas”, defende Susana Belchior. Poderíamos ter disponíveis para todos os fados, canções populares ou números humorísticos registados nos cilindros portugueses. Poderíamos até descobrir-nos numa aula do departamento de Física da Universidade de Lisboa no início do século XX — o Museu Nacional de História Natural e da Ciência tem esse conteúdo em alguns cilindros. Sim, porque não só da música das gravações comerciais se faz este repertório.

Navegando pelo arquivo da Universidade da Califórnia, ouvimos mais. A colecção inclui cerca de 600 cilindros caseiros: celebrações de aniversário, um homem que testa as melhores melodias em assobio para chamar o cão, um velho prussiano imigrado para os Estados Unidos que conta, em alemão, a história da sua vida — incluindo a participação na guerra franco-prussiana de 1870-1871 —, ou uma mulher, Rachel Wombough, que David julga ser a mais antiga americana com voz registada. “Já era muito idosa quando o cilindro foi gravado [em 1898]. Nascera em 1815, o que é incrível, significava que estava viva quando também o estava Thomas Jefferson”. Tal como Napoleão, que morreria quando Rachel tinha seis anos. E talvez até tenham chegado notícias a Rachel da guerra civil que irrompeu num país chamado Portugal em 1828, tinha ela 13 anos.

Para a idosa Rachel, aquele aparelho com um tambor onde se colocava um cilindro, habitualmente de cera, que, percorrido por uma agulha, gravava ou reproduzia sons amplificados por um cone, pareceria ficção científica. Para nós, é uma cápsula do tempo muito peculiar: o esboço daquele curto período de tempo em que os pioneiros fonógrafos de cilindros foram reis.

Porque é, então, importante recuperá-los, preservá-los, divulgá-los? Antes de mais, porque são património, memória viva — só isso seria suficiente. Depois, porque neles está registada “grande música”: “Elaborei uma playlist de cakewalks [dança célebre no final do século XIX, nos Estados Unidos] e ragtime, e sinto que, quer tenha 15 anos ou 80 anos, reconhecerá que ainda soa fresca a música contida naquelas velhas gravações”, diz David Seubert. Por fim, porque, para o investigador americano, as gravações, para além de poderem ser úteis a historiadores, sociólogos, antropólogos, musicólogos, linguistas ou músicos, contam uma história que Seubert considera importante recordar, “a de que a América é uma nação de imigrantes vindos de todo o lado”. Acentua: “Agora que temos a crise na Europa com os refugiados sírios, e que também aqui se debate se devemos acolhê-los e quantos devemos acolher, espero que isto permita relembrar que essa condição faz parte da estrutura do nosso país”.

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