Paulo Cunha e Silva por si próprio

O vereador da Cultura do Porto participou no projecto Porto Olhos nos Olhos, de dois jornalistas do PÚBLICO. Aqui fica o seu testemunho, na primeira pessoa, recolhido no dia 2 de Outubro.

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“Sou um alentejano acidental. Os meus pais conheceram-se em Coimbra e casaram-se por lá. Ela era professora, ele juiz. E o primeiro lugar onde foi colocado foi em Beja. Portanto, nasci no Alentejo por essa circunstância. Tinha um ano quando nos mudámos. Vivemos em Aveiro, em Portalegre e, por fim, chegámos a Braga. Tinha seis anos. Apesar de o meu pai ter vindo depois para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça em Lisboa, ficou sempre residente em Braga. Eu vim para o Porto para estudar medicina. Mas a minha relação com a cidade era mais antiga, do tempo em que vinha visitar os meus avós, onde fiquei a viver a partir dos 18 anos.

Lembro-me de ser muito miúdo, com uns 12 anos, e vir às livrarias da cidade comprar sobretudo livros de arte das colecções mais antigas. E tinha uns 14 anos quando comecei a escrever crítica e comentários no Correio do Minho — lembro-me de ter escrito sobre o Nadir Afonso e vários artistas que iam expondo na cidade. Sempre tive dois mundos dentro de mim.

Era bom aluno às partes das ciências, mas também às artes e humanidades. Na verdade, era mau aluno apenas ao que exigia capacidade performativa: como desporto, dança ou desenho. Mas sempre tive uma relação grande com a arte e a história da arte. Ia muito a Lisboa, aos ciclos de música contemporânea da Gulbenkian. E também comecei a viajar muito cedo. Fiz um inter-rail com 19 anos e conheci nessa altura vários museus. Aos 26, já conhecia uns 50 países, todos os museus europeus e os principais do mundo.

Porque é que, neste contexto, fui para medicina? Primeiro porque era o curso mais difícil e, sendo o melhor aluno do liceu, ir para o mais difícil fazia sentido. E depois porque o meu pai era juiz, mas gostava de ter sido médico. Achou-se, na altura, que médico acabava por ser uma profissão pouco prestigiada e que, por isso, eu iria para medicina mas faria depois o que me apetecesse. E sempre foi assim.

Fiz o curso tranquilamente — era conhecido por 'Paulinho dos vintes' —, mas estive ligado a outras coisas. Curiosamente, nos últimos anos do curso, quando comecei a dizer que me interessava mais a parte académica e de investigação, os meus professores achavam que se estava a perder um grande clínico. Diziam que tinha muita sensibilidade diagnóstica. Talvez por gostar de olhar para sinais diferentes e diversos e chegar a uma conclusão. E o meu pensamento tinha, de facto, essa metodologia clínica.

Ainda hoje, como vereador da cultura da cidade do Porto, uso um bocadinho essa estratégia de olhar a cidade como um corpo que sofre e precisa de diagnóstico e terapêuticas. Portanto, como estudante, sempre mantive este lado cultural. Mas não no sentido pesado, porque sempre saí imenso — e nunca olhei para o conhecimento com gravidade. Costumo dizer que tenho a sensação de que cheguei aos 53 anos sem nunca ter trabalhado. Porque sempre fiz o que gostava. E se não gosto saio. Portanto, se me vêem num sítio, é porque estou feliz nesse sítio.

A relação com a cultura aconteceu dessa forma natural e dupla. Por exemplo, comecei a colaborar de uma forma sistemática com a Fundação de Serralves em 1990. Tinha 28 anos e já era comissário de várias organizações. Fazia ciclos que eram olhados de forma desconfortável e que agora estão na moda porque ligam a ideia de pensamento e de performance, com pessoas de múltiplas áreas. Comecei com um que se chamava ‘O Corpo e os seus Discursos’. Era assistente do professor Nuno Grande e propus-lhe que assinalássemos o centenário do Abel Salazar com conferências e uma exposição de lâminas histológicas — que o comemorava na sua ambiguidade. 'Usei' o Abel Salazar para me escudar um bocadinho desta minha duplicidade. Ele era professor de medicina, inventou um método histológico chamado método Tano-férrico e era também um pensador, artista visual e um personagem dos sete ofícios. Costumo dizer que levei longe demais a frase dele que dizia que ‘um médico que só sabe medicina, nem medicina sabe’.

Fiz muitas coisas em Serralves na década de 90, e também na Gulbenkian. E fui estando sempre ligado a vários projectos, comissariando exposições, escrevendo. No meu livro de curso uma das coisas divertidas que escreveram foi que era 'amigo de poetas e outras artistas'. Já nessa altura em que estudava e em que parava muito pelo Piolho, os meus amigos eram menos os de medicina e mais os de letras, artes e arquitectura.

Depois destes anos surge o Porto 2001. Comecei com uma área muito pequenina quando a Manuela de Melo me pediu para fazer o que fazia em Serralves mas de forma mais sistemática. Respondi-lhe que podia ficar com a área do pensamento — mas às tantas era importante ficar com a área das ciências, da literatura, dos projectos interdisciplinares, das relações com Roterdão... E o pequeno programador acabou por crescer. Envolvo-me muito com as coisas. E acho que tenho a capacidade de fazer as pessoas que estão à minha volta entrarem nessas aventuras — às vezes stresso-as um bocadinho demais, mas elas entram no barco.

A programação como criação é para mim fundamental. As pessoas queixavam-se muitas vezes que, quer como curador quer como programador, era alguém que sacrificava as manifestações individuais artísticas em função de um projecto artístico que era o meu. Defendia-me dizendo que criava uma narrativa a partir dos discursos dos outros, mas que se os discursos dos outros pudessem contribuir para outro, ganhavam os dois. É um bocadinho a ideia da marca Porto que tento trabalhar com o presidente da câmara. Ou seja, a cidade é um conglomerado de marcas. Mas se usar a marca Serralves, Casa da Música, vinho do Porto, barroco, património mundial, Manoel de Oliveira, Siza Vieira e escola de arquitectura, por um lado a marca Porto fica mais consistente e, por outro, enriquece as outras. Não há que ter ciúmes uns dos outros.

Num sistema complexo, o conjunto é mais do que a soma das partes, mas as partes passam a ser mais do que aquilo que são se funcionarem autonomamente e entregues à sua solidão cósmica. Sinto dificuldade em fazer com que algumas das instituições da cidade se articulem e se abram mais. As pessoas estão um bocadinho encriptadas no seu mundo e é mais confortável viverem dentro de casa do que saírem. Tenho dito que a câmara do Porto, sob o ponto de vista cultural, não entra em competição com as outras instituições. Não faz o que as outras fazem, mas faz o que as outras não fazem e é mediadora — tenta estabelecer relações entre elas e convoca-as para um projecto global de cidade. Não é fácil fazer isso, mas se fosse fácil também não tinha muito interesse.

Quando o Rui Moreira se candidatou, identificou três áreas fundamentais: a coesão social, o desenvolvimento económico e a cultura. A cultura é o cimento que se infiltra. Que cria uma ideia de identidade e de pertença, favorecendo a coesão social — e temos trabalhado muito nisso com o programa ‘Cultura em Expansão’ —, mas também o desenvolvimento económico.

Num estudo que fizemos, verificámos que há nestes últimos anos uma viragem total relativamente àquilo que eram as nossas expectativas sobre o turismo que está a acontecer na cidade. Pensávamos que era um turismo low cost e percebemos que há um turismo cultural a crescer de forma impressionante: 75% dos utilizadores dos espaços museológicos da câmara são estrangeiros, ficam em hotéis de 4 e 5 estrelas e têm uma apetência muito grande para conhecer outros espaços culturais. Portanto, a cultura é um fortíssimo factor de desenvolvimento económico. Quando uma pessoa vai a outra cidade espera duas coisas: que seja glamorosa, mas também que tenha características que não se encontram em mais lado nenhum. É legítimo que na Avenida dos Aliados exista a Prada, a Louis Vuitton ou a Hermès, mas a Rua do Almada tem de permanecer como a rua das ferragens. E estamos numa fase muito crítica em que aquilo que caracteriza o Porto, até como cidade comercial, pode estar a desaparecer e a ser substituído por uma voragem de lojas de bugiganga turística anódina e inconsequente.

Tenho estado a trabalhar com um fulano americano que foi conselheiro do Obama para conseguir identificar uma centena de zonas comerciais da cidade que possam ter um regime tão especial que lhes permita sobreviver e não terem de se sacrificar em nome desta voragem turística, que tudo quer normalizar e equalizar. Isso é uma situação que me preocupa muito: como manter o carácter da cidade sem deixar que a bolha turística expluda e o abastarde completamente.

Voltando a 2001. Digo sempre que o meu tema é o futuro e não o passado, mas é óbvio que, quando o Porto 2001 acabou, se perdeu uma oportunidade única. Passados 12 anos estamos a demonstrar que o esforço preciso não era assim tanto. Mas foi uma opção política que agora não vale a pena discutir. Findos esses anos, retomei a minha vida como docente na Universidade do Porto, cargo que continuo a exercer, e, em 2003, fui convidado para fazer a fusão do instituto da arte contemporânea e do instituto português das artes do espectáculo. Tinha defendido — e na altura fui super-atacado por isso — que a mesma instituição deveria estabelecer a articulação dos programas de apoio das artes visuais e das artes performativas.

Passados estes 11 anos dessa minha opinião, Serralves tem um programa que se chama ‘O Museu como Performance’. Não fazia sentido essa separação, mas sim um único instituto que olhasse para as duas áreas simultaneamente e criasse uma política de apoios mais articulada. Não havia, por exemplo, apoio à criação no âmbito das artes visuais. Normalizei essa política de apoios. Mas acabei por sair ao fim de dois dos três anos de mandato. Foram anos complexos porque tive três governos e três ministros — o Pedro Roseta, a Maria João Bustorff e a Isabel Pires de Lima — e, curiosamente, aquele de quem era mais amigo foi aquele com quem tive mais problemas e com quem acabei por me demitir. Este deve ser o organismo mais complexo da administração pública portuguesa, porque nunca nenhum director-geral chegou ao fim do mandato, seja por ter saído ou por ter sido convidado a sair.

Depois desta experiência, fui convidado para ser conselheiro cultural em Roma. Foi uma situação muito interessante estar num sítio praticamente sem orçamento. Deu-me algum talento na capacidade de fazer muito com pouco e, sobretudo, de estabelecer sinergias com várias instituições. Fizemos um trabalho bastante interessante em Itália, porque conseguimos introduzir a marca Portugal, que é uma marca muito estranha porque as pessoas não sabem muito bem o que é o país. Temos um conjunto de estrelas que não conseguem formar uma constelação. Toda a gente sabe quem é o Saramago, o Pessoa, o Mourinho, o Ronaldo, o Siza Vieira, o Manoel de Oliveira — mas não há uma ideia de país. E isso tem a ver com a péssima estratégia de internacionalização, que só se pode fazer através de uma diplomacia cultural muito sustentada. Entrou na moda a diplomacia económica, mas ninguém investe num país que não sabe muito bem o que é, que não tem rosto e identidade. E quem dá rosto e identidade é a cultura — é por isso que a Espanha é um país forte internacionalmente. Falar só em diplomacia económica é um erro político infinito. A diplomacia começa por ser política, é cultural e é naturalmente económica. Mas só estes três vértices conseguem uma diplomacia eficaz.

Um dos meus confrontos mais tristes aconteceu recentemente quando fui à Expo de Milão e confirmei, com tristeza, que Portugal era o único país de toda a União Europeia que não estava presente. Estava o Kosovo, a Albânia, todos os países da CPLP. E Portugal deu-se ao luxo de não estar numa expo onde o tema era a alimentação sustentada, área na qual até temos uma papel histórico e fundamental. Disseram-me que a presença custava sete milhões de euros. Mas isso é a mesma coisa que dizer que a presença nas Nações Unidas custa 12 milhões... Há quotas que não podemos deixar de pagar. Não podemos deixar de ter água em casa. Isto radica para uma total falta de pensamento estratégico sobre o lugar de Portugal no mundo e sobre a importância da cultura na promoção desse lugar. Neste momento, o país vive um boom turístico, mas um bocadinho na sequência de ser a última coisa desconhecida e bizarra a ser descoberta. Mas, como diz o Rui Moreira, não queremos ser eternamente o último segredo mais bem guardado da Europa.

Fiquei em Roma três anos, três meses e três dias. Foi muito interessante. Foi um trabalho algo simétrico ao que faço aqui como vereador: no Porto tenho um território pequeno com algum orçamento, não o que quero mas algum, lá era obrigado a olhar para o país todo a partir de fora e sem orçamento.

Ainda estava em Itália quando agarrei um projecto muito ambicioso para a Capital Europeia da Cultura Guimarães 2012: ‘O Castelo em 3 Actos’. Fazer isto a partir de fora foi muito difícil. Achamos que com Skype e outras tecnologias se torna fácil, mas nada substitui a presença física. Tanto assim que, numa das minhas vindas cá, tive o acidente da minha vida. Ia ter com um artista que estava nessa exposição. E estava atrasado. Estava a conduzir e peguei no telemóvel para lhe dizer que não chegava à hora combinada. E, no momento em que procuro o número dele, perco o controlo do carro e capoto. Costumo explicar a gravidade do acidente pelo preço que o sucateiro dava pelo carro: era um Mercedes SLK que passou a valer 400 euros. Acabei por oferecê-lo a um artista amigo que trabalhava com carros. Tempos depois, convidaram-me para abrir um congresso do sangue no Santo António e usei a história do meu acidente para reflectir sobre o que é o sangue. Eu saí do carro todo ensanguentado, porque tinha uma ferida no couro cabeludo, e havia pessoas que travavam bruscamente e outras que aceleravam vertiginosamente. O sangue tem essa capacidade ambígua.

Quando regresso definitivamente ao Porto, volto para a Universidade e, pouco tempo depois, recebo o convite do Rui Moreira. Aceitei logo porque conhecia-o bem e gostava dele. Nessa altura, estava a ver uns livros em casa e encontrei um do Rui Moreira, com uma dedicatória. Dizia: 'Para o meu amigo Paulo Cunha e Silva, um dia havemos de fazer qualquer coisa por esta cidade tão maltratada'. Isto foi em 2005. Passados oito anos, concretizou-se. Conseguimos nestes últimos dois anos fazer uma coisa muito importante, que foi normalizar a relação da Câmara com a cidade cultural. Conseguimos pôr todos os equipamentos a funcionar a um ritmo bastante interessante e passar a mensagem de que não é preciso ter mais equipamentos para ter mais cultura. Conseguimos resolver o problema do Rivoli e do Campo Alegre. Insistimos nesta ideia de que o principal equipamento cultural da cidade é a própria cidade. Olhando para o Porto como um palco de acontecimentos.

Um dos programas mais discretos mas mais interessantes que temos — o ‘Um Objecto e seus Discursos’ —, olha para a cidade e para o seu património de uma forma muito diversa. Os objectos estão no sítio e são protagonistas da discussão. Mas a noção de património é tão vasta que pode ir da espada do D. Afonso Henriques até à taça dos clubes campeões europeus do Futebol Clube do Porto.

O programa ‘Cultura em Expansão’ é também fundamental na lógica de, através da cultura, olhar para as zonas mais desfavorecidas do Porto e não só ir lá mas trazer essas zonas à cidade. É um forte investimento de socialização e de criação de uma ideia de cidade mais unida e sem trincheiras. Depois há muito trabalho invisível feito. É natural que o que se passa nos teatros seja mais visível do que aquilo que se passa nas bibliotecas, por exemplo. Mas isso não faz das segundas centros menos importantes. Uma coisa que vou fazer neste ano é chamar a atenção para a Biblioteca Pública Municipal do Porto, para mim o equipamento cultural mais importante da cidade. Se tivessem de desaparecer todos os equipamentos — Serralves, Casa da Música, Teatro Nacional de São João, Rivoli —, se só um pudesse sobreviver a um cataclismo, diria que tinha de ser obviamente a Biblioteca Pública Municipal. Tem um fundo e um acervo riquíssimo e está muito esquecida. Estou a preparar uma grande exposição sobre os tesouros da nossa biblioteca, de uma forma lúdica. E há um outro projecto que me convoca muito, que é o do Matadouro. Este pode ser o lugar onde o programa da câmara — cultura, desenvolvimento económico e coesão social — ganha sentido a partir de um espaço absolutamente iconográfico. É ali. Olhar para esta zona da cidade parece-me absolutamente estratégico. O Porto pode ser uma espécie de micro-Berlim do Sul da Europa e de Florença do século XXI. Se trabalharmos nessas duas coisas teremos uma cidade espectacular."

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