O poder imita-se a si próprio

A sucessiva tomada do lugar de protagonista pelos vários membros do elenco dá a ver múltiplas encarnações de Ricardos e expõe a trajectória de Gloucester como um assunto que diz respeito a todos.

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Filipe Ferreira

Nas mesmas semanas em que, nos jornais e nas televisões, nos cafés e nos transportes públicos, no parlamento e nas sedes partidárias, se discutem fervorosamente os destinos do país, na grande Lisboa estão em cartaz quatro versões de peças de Shakespeare (talvez haja mais, não sei): um Hamlet, da Cornucópia e da Companhia de Teatro de Almada, no Teatro Municipal Joaquim Benite; outro Hamlet, da Mala Voadora, no Teatro Municipal São Luiz (este já do ano passado); uma Tempestade, do Teatro Griot, no Teatro do Bairro; e um Ricardo III, dirigido por Tónan Quito, no Teatro Nacional D. Maria II. Poderá o país mediático, o país real e o país político ter algo a ver com o país teatral — em especial com esta mostra shakespeareana que aconteceu por acaso?

No caso de Ricardo III, sim, mas sem fazer alusão directa a qualquer tipo de evento. O cenário representa a devastação. O palco da sala Almeida Garrett é uma vasta caixa de terra negra, onde os actores vão cavando sepulturas e cobrindo covas à pazada, deixando em cena pequenos montes encimados por espadas a fazer de cruz. Os assassinatos cometidos a mando de Gloucester vão-se amontoando neste cenário de guerra. O palco é um campo de batalha que se revela aos poucos até que, na cena final, em contra-luz, quase engole a plateia. É nesta terra de ninguém que, ao longo da peça, os vários actores assumem o papel da diabólica personagem, como se estivessem a jogar aos reis. A desagregação causada por esse movimento exemplifica a desagregação na corte britânica. A sucessiva tomada do lugar de protagonista pelos vários membros do elenco dá a ver múltiplas encarnações de Ricardos e expõe a trajectória de Gloucester como um assunto que diz respeito a todos.

O assunto é o da tomada do poder através da ilusão e do fingimento. Quando melhor for a representação da parte, de acordo com o que se espera do papel, maior será a aclamação do poderoso por parte dos fracos. Os súbditos, como os espectadores, pagam para ser enganados. É assim que os príncipes mais disformes se tornam perfeitos aos olhos de quem não quer ver. O jogo dos actores, desde a malotinha que põem para assumir o papel de Ricardo, até à maneira como integram a plateia no fingimento da peça, expõe a ilusão. O modo como o elenco mostra o fingimento das personagens dá gozo de ver e materializa um dos muitos sentidos do texto.

A vertigem do duque para chegar a rei e, uma vez coroado, para se manter no trono a qualquer custo, revela-se um abismo sem fim, quando as forças que ele combateu, já sem caírem em qualquer logro, têm finalmente tempo para se organizar e, comandadas por outro príncipe, ainda mais persuasivo, marchar sobre o corpo do soberano. É nesse ponto que Ricardo tenta salvar a vida, trocando o reino por um cavalo, como se o reino ainda fosse dele. Tarde demais. A Ricardo III nada mais resta senão imitar-se a si próprio. A emergência desse poder alternativo não fica clara, na marcha do espectáculo, a não ser quando já é inevitável. O tirano não dá parte de fraco e tenta manter a ilusão até ao último momento. Como figuração dos tempos que correm, é quase perfeita. O espectáculo não se esgota nessa função, porém. Age directamente sobre a cultura e o real, da mesma maneira que os media, os taxistas, os políticos, segundo os seus próprios termos e fins, neste caso poéticos, dramáticos, teatrais. É um reflexo, nos dois sentidos da palavra: uma imagem reflectida e um movimento involuntário dos músculos. 

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