Dez anos depois há meio milagre

O jornalista Gary Rivlin viveu os oito meses que se seguiram ao Katrina em New Orleans. Reportou então a vida da cidade diariamente para o New York Times. Agora aparece com um livro onde questiona a reconstrução e aponta o dedo a uma política de discriminação.

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Dez anos depois do Katrina há uma população que celebra a reconstrução de New Orleans e outra que se interroga acerca de quando essa reconstrução estará concluída, ou se alguma vez estará. O jornalista Gary Rivlin chama a essas duas perspectivas sobre o actual estado da capital do Louisiana “a narrativa branca” e “a narrativa negra”. Uma e outra representam, segundo ele, o fosso entre brancos e negros, que se acentuou ainda mais no período pós-furacão. Diz ainda que o fim desta história é neste momento imprevisível.

New Orleans não é o milagre de que todos falam, mas apenas “um meio milagre”. A expressão é do jornalista, que não aposta num final feliz. “Estou pessimista, por mais que essa minha posição irrite os dirigentes locais”, afirma à Revista 2 dias depois de publicar Katrina: After the Flood (Simon & Shuster), um livro em que faz o retrato da última década na região devastada por um dos mais violentos furacões da História dos Estados Unidos da América. Desde o momento em que se anunciava a tempestade até ao momento em que se anuncia agora, quase formalmente, o fim do trabalho de recuperação da catástrofe. “O que aconteceu em Agosto de 2005 pode ter parecido irreal em muitos aspectos, ou mesmo surreal, mas não é menos surreal que a cidade continue com tanto por fazer, que continue a não existir um hospital público, que projectos de habitação pública não tenham avançado e que o mayor venha declarar publicamente que a reconstrução da cidade terminou, que New Orleans está recuperada do Katrina. Ele fez estas declarações em Maio deste ano. Isto é surreal.”

Gary Rivlin viveu oito meses em New Orleans depois do furacão. “A água continuava a cobrir grande parte de New Orleans na primeira vez que vi a cidade depois do furacão Katrina”, conta numa nota de autor onde descreve ainda as circunstâncias que o levaram ao cenário de catástrofe uma semana depois de estar a escrever sobre o Google, o Facebook e Silicon Valley na delegação de São Francisco do New York Times. Rivlin era repórter da secção Nacional quando foi chamado a ajudar na cobertura do Katrina. “A minha New Orleans era a New Orleans dos turistas: Bourbon Street, Mardi Gras, o Festival Jazz & Heritage. Não tinha qualquer ligação com alguém que vivesse lá.” O seu novo escritório seria por ali, em qualquer lugar onde pudesse escrever umas linhas e enviá-las para o jornal. Encontrou-o já determinado por colegas que tinham chegado antes dele. Chamaram-lhe “a plantação”, uma velha casa de colunas em Bourbon Street, no centro, e que antes do Katrina era alugada para festas. Seria ali a mais recente redacção do New York Times.

Gary Rivlin escrevia diariamente sobre a devastação e o modo como a cidade reagia a dias de ventos fortes, chuvas torrenciais e a invasão do mar. O livro é a história dessa experiência através das pessoas que conheceu e o ajudaram a conhecer a realidade. É por aí que a conversa começa, quando Rivlin viaja num comboio para Nova Iorque, onde vai apresentar Katrina: After de Flood numa livraria de Union Square.

Natural de North Woodmere, na costa sul de Long Island, onde nasceu em 1958, Gary Rivlin foi jornalista no New York Times, na New York Times Magazine, Wired e Newsweek, é autor de vários livros em que cruza ensaio e reportagem. Ao ler Katrina: After de Flood — mesmo para quem não tenha lido mais nada sobe New Orleans — estamos perante uma velha história que prolonga uma ferida antiga.

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Membro da National Guard patrulha o Centro de Convenções onde foram realojadas vítimas do furacão Carolyn Cole/Los Angeles Times/MCT

Quando a história se repete, ou quase

A narrativa das tempestades em New Orleans é longa. Teve um dos seus episódios maiores em 1927, com aquela que ficaria conhecida como a Grande Tempestade, quando o Mississípi rompeu as fronteiras do seu percurso há pouco tempo alteradas por uma população cansada de destruições cíclicas que queria domesticar o rio. Então, a água quebrou as barreiras e invadiu uma área de 27 mil metros quadrados, atingindo quase três metros de altura e fazendo milhares de desalojados, sobretudo entre a população negra, a grande força laboral da região.

A história não se repetiu da mesma forma em Agosto de 2005. Teve outras consequências. Havia imagens e elas revelaram mais do que números. Corpos à tona da água, milhares de hectares submersos, casas destruídas, gente sem saber para onde ir. Escreveu-se que depois do Katrina a América perdeu “alguma inocência” em relação à pobreza no país. A reconstrução deveria limpar isso?

A 29 de Agosto, a 11.ª tempestade a merecer nome naquele ano atingia o Louisiana com ventos de 280 quilómetros por hora, causando cerca de mil mortes e um milhão de desalojados. “Durante vários dias, o mundo assistiu em directo à tragédia de uma cidade submersa e de uma população encurralada. O país dava uma imagem de enorme fragilidade, o Governo Federal recebia críticas de todo o lado”, lembra Rivlin.

Como é que o país que invadira o Iraque dois anos antes e declarava uma guerra universal ao terrorismo não era capaz de evitar uma tragédia interna? “Hoje olho para isso de outra forma. Não é fácil ter uma câmara apontada para uma tragédia daquelas. Hoje não culpo o Governo Federal pelo estado de aparente anarquia que se instalou nem o que se seguiu de imediato. Culpo a gestão da cidade e a gestão do estado do Louisiana… Houve decisões tontas e outras totalmente erradas”, aponta Gary Rivlin, remetendo para os números e uma enumeração exaustiva de medidas, programas, experiências suportadas por testemunhos de quem as viveu, num relato intenso onde parte de muitas perguntas às quais tenta dar resposta. “Como está hoje New Orleans?” é apenas a mais abrangente. “Está dividida”, responde. “Sinceramente, acho que em muitos aspectos está pior do que antes.”

Sabe que esta sua resposta vai a escrutínio cerrado numa data que soa a celebração. “New Orleans é uma cidade que continua muito sofrida. A parte do centro, do chamado French Quarter, o mais conhecido, parece recuperada. Mas é preciso sair dali, percorrer o resto da cidade, ver que há bairros que continuam como no primeiro ano depois do Katrina, um destroço. Há muitas pessoas, como o mayor e alguns dirigentes políticos locais, que estão chateadas comigo. Eles querem que me junte a eles, vêm ter comigo a falar de recuperação, querem que entre no discurso da cidade-milagre; uma cidade que se recuperou a si própria e está melhor do que nunca; que há uma resiliência na população e há heróis. Mas eu não estou pronto para lhe chamar um milagre. Chamo-lhe um meio milagre. Continuo à espera da outra metade do milagre de que se fala.”

E terá de ser um milagre maior do que New Orleans, porque parte do que News Orleans foi e é faz parte de um legado maior. Talvez quem como ele tenha assistido aos primeiros dias após o Katrina possa fazer a mesma leitura: a de que o preconceito, o “favorecimento”, a “desigualdade”, o “esquecimento” que se manifestaram nesse início de salvamento marcaram todo o período seguinte: o da recuperação. “A tragédia aqui é que houve um desastre que causou a destruição de uma comunidade e as políticas locais que apareceram favoreceram as comunidades mais privilegiadas. Houve uma sobreposição de interesses. Cinquenta e quatro por cento das habitações em New Orleans eram alugueres por altura do Katrina e não houve qualquer plano ou ideia para ajudar estas pessoas, um plano para as trazer de volta depois do acidente.” Como? “Por exemplo, arranjar casas a baixos custos. O alojamento é tão raro depois do Katrina que o mercado simplesmente inflamou; as rendas subiram de tal maneira por falta de oferta que se torna incomportável pagá-las. Isso afectou mais de metade da cidade. Mais de metade da cidade ficou sem ajuda.”

Rivlin não esconde o desalento pelo que considera serem políticas de exclusão. No livro, socorre-se também de declarações de testemunhas — centenas — a que junta números reveladores para o peso que questões raciais ou de classe desempenharam nesta reconstrução. Não foi apenas no salvamento imediato que essa diferença se manifestou. Ela era mais profunda, fazia parte do modo como toda a cidade estava estruturada.

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Um homem à frente do Superdome, em New Orleans. As águas subiram de tal forma que algumas pessoas ficaram afogadas dentro das suas próprias casas James NIELSEN/AFP

Episódios de uma cidade à parte

Na noite anterior à tempestade, Alden J. McDonald Jr., o presidente do maior banco de que a comunidade negra é proprietária nos Estados Unidos, o Liberty Bank and Trust, reservou vários quartos no Hyatt de New Orleans, um edifício sólido, considerado um dos mais seguros da cidade. Vários serviços de emergência mudaram-se para lá durante a tempestade (e foi de lá que o mayor dirigiu os trabalhos de prevenção e salvamento). “Teoricamente, prometia aos seus convidados um ancoradouro seguro no caos”, continua Rivlin. “McDonald acordou cedo na sua casa naquela manhã do último domingo de Agosto. Dormiu talvez três ou quatro horas. O Centro Nacional de Furacões classifica cada tempestade tendo por base a força dos ventos. Quando McDonald e a sua mulher, Rehsa, se foram deitar na noite de sábado, o centro tinha classificado o Katrina como uma tempestade forte de categoria 3. Naquela manhã cedo, a tempestade subira na escala para a categoria 5. Não há categoria 6”, escreve Rivlin. Foi um dos furacões mais arrasadores da história dos EUA.

Na manhã daquele domingo, depois de McDonald beber o café, eram muitos os avisos. A tempestade parecia-se com a de 1927. Sendo natural de New Orleans, McDonald tinha ouvido falar muito na Grande Tempestade. Ele nascera na zona leste da cidade, aquela onde vivia a maior comunidade afro-americana pertencente à classe média. Era filho de uma criada e vivia agora em Lake Forest Estates, um enclave de ricos. “Pouco depois das oito da manhã, McDonald saltou para o volante do seu BMW vermelho descapotável. Só mais tarde iria perceber que aquela viagem à volta de New Orleans Leste era uma espécie de despedida à que fora a sua casa durante mais de trinta anos. ‘Este é o meu povo’, diria sobre os residentes de New Orleans Leste quando o mayor Ray Nagin, um mês depois do Katrina, o nomeou para uma comissão encarregada de determinar que partes da New Orleans submersa seriam reconstruídas e que partes seriam devolvidas ao pantanal numa cidade destinada a perder residentes.” New Orleans será uma cidade mais pequena. Já é. Perdeu cerca de 200 mil habitantes, tendo agora 378 mil.

Alden McDonald é apenas uma das personagens que Rivlin segue. Como ele, há políticos — republicanos e democratas —, activistas sociais, motoristas, homens de negócios, médicos, bombeiros, homens e mulheres, brancos e negros. Esses testemunhos constituem a parte mais interessante de um livro que se tornou o projecto de vida de Rivlin nos últimos anos.

Rivlin relata o quotidiano de uma cidade que foi sempre um caso à parte na História dos Estados Unidos e que para si representa um enorme foco de tensão que pode alastrar ao país, que faz parte do debate nacional e que vai marcar a agenda das eleições presidenciais de 2016. É a velha questão que a América parece incapaz de resolver: brancos versus negros.

O modo como foi feita a reconstrução, ou os anos pós-Katrina, tem uma grande quota de responsabilidade no que se está a passar. “Estamos a falar de disparidades raciais, da maneira como políticas estão a influenciar e a aumentar essas disparidades, de como as leis tratam os afro-americanos de maneira diferente dos brancos. Isso é a história de New Orleans. Há muitos activistas negros de prestígio que aparecem a reivindicar a origem da frase que anda a percorrer a América nos confrontos mais recentes: black lives matter. Ela tem a génese em New Orleans, porque ali todos vemos rostos que revelam estar encurralados. O que se pode fazer, sendo negro pobre em New Orleans depois de ouvir o tal discurso de que a recuperação está feita? É sentir-se entregue a si mesmo sem meios, sentir-se abandonado. Houve outros que foram salvos numa história de grande desigualdade. Na primeira semana, todo o resgate foi tão desigual que se tornou claro o que se seguiria. A recuperação também não tem sido democrática. Isto, para mim, quer dizer muito sobre o debate que é actualíssimo na história deste país.”

A questão tem sido manifestada publicamente, em entrevistas e nas redes sociais desde que o livro foi publicado, no dia 11 deste mês de Agosto, e volta a ser sublinhada nesta conversa em que alerta para os potenciais perigos de um discurso que dê por concluída a reconstrução de New Orleans. Há uma longa tragédia de sobrevivência e persistência, mas também corrupção e aproveitamento, em que uma parte frágil da população serve a mais forte. “Aí, socialmente, a recuperação está por fazer”, afirma.

A canção de Bessi Smith Backwater blues é famosa no Louisiana. Conta outra reconstrução, a de Abril de 1927: “When it thunders and lightnin’ / and the wind begins to blow, There’s thousands of people / ain’t got no place to go.” “Continua a ser verdade”, insiste Gari Rivlin. Katrina: After de Flood lembra as palavras que Richard M. Mizelle escreveu em Backwater Blues, o mesmo título da canção de Bessie, sobre a mesma tempestade. Diz ele que o que se passou então é apenas “parte de uma narrativa muito mais longa de como raça, classe, género e questões de sociais são a moldura do desastre ambiental”.

No livro de Rivlin, tudo vem dessa moldura social de que falou Mizelle. Escreve agora: “Em grande parte da metade oeste da cidade, onde vivia a maioria branca, o Katrina foi mais uma inconveniência grave do que uma tragédia. A maior parte dos homens de negócios brancos que estavam nessa noite no Gino’s [um famoso restaurante italiano em Baton Rouge, com uma grande área de bar] estava frustrada por não poder voltar para casa, mas sabia que tinha uma casa e bens e um emprego para onde voltar.”

Rivlin conta, a propósito, a história de Lance Hill, branco, habitante da parte alta e privilegiada de New Orleans. Naquele dia 29, ele era “um homem branco no lado errado”, lê-se. Não era rico, era um activista que lutava pela igualdade de direitos, pela inclusão racial. Passeava de calções e T-shirt. “Depois do Katrina, se se estivesse em Uptown e se fosse branco, as pessoas assumiam que se era rico”, conta na reportagem de Rivlin: “Eu estava no meio de pessoas que estavam abertamente a planear uma cidade que fosse mais branca e influente do que era antes do Katrina.” Essas pessoas pertenciam a uma aristocracia local, com raízes antigas na região. Nos dias em que esteve entre essas pessoas, Hill descreve conversas que confluíam para um ponto: “A sua visão era a de uma New Orleans à imagem daquela que os seus antepassados teriam gostado antes de a comunidade negra da cidade dominar a política local.”

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Raparigas que participaram numa parada em New Orleans a 27 de Agosto de 2007 Mario Tama/Getty Images/AFP

O Katrina era o pretexto para chegar a essa realidade sonhada. “Para muitos, uma New Orleans alagada significava uma folha branca sobre a qual se poderia criar uma cidade nova e melhor. Build up, not out foi uma mantra familiar nas semanas após o Katrina. Bairros inteiros eram imaginados como jardins, enquanto outras partes da cidade seriam transformadas em minimetrópoles densas em projectos de condomínios. O mayor usou a comissão Bring New Orleans Back de modo a evitar qualquer outra opinião acerca do futuro da cidade. ‘Nós criámos um processo’, repetiu. ‘Agora deixem decorrer esse processo.’”

O mayor de então era Ray Nagin. Eleito em 2002, seria reeleito em 2006 e esteve em New Orleans até 2010. Negro, democrata, é um dos nomes mais visados neste livro de Rivlin. Cinco dias depois do furacão, saía da cidade, alegando que precisava de uma pausa para recuperar do cansaço. Foi recentemente condenado a dez anos de prisão por crime de corrupção. Mitch Landrieu, branco, católico, democrata, era então governador adjunto do Louisiana. Em 2010, substituiu Nagin. Desde 1978 que não havia um branco à frente dos destinos da cidade. O último fora o seu pai, Moon Landrieu. Mitch teve o voto de brancos e negros. Nas eleições, ele tinha tomado uma posição: reduzir os limites da cidade seria reduzir o seu destino. Numa entrevista pediu para não lhe chamarem um mayor branco, pediu ainda para não descreverem New Orleans como uma cidade maioritariamente negra. “New Orleans nunca foi uma cidade branca ou negra”, declarou. “É um melting pot.

Depois do Katrina estima-se que 80% da população afro-americana e 20% de brancos abandonaram a cidade. Os afro-americanos, apesar de terem diminuído de peso, continuam a representar 59% da população. Grande parte deles não gostou de ouvir Landrieu dizer que a reconstrução estava feita e a cidade pronta a enfrentar os desafios sociais e económicos.

Resta perguntar a Rivlin qual é então a parte do milagre, a metade para celebrar. “A cidade é mais segura do que era há dez anos. Os turistas vão notar a diferença. Há novidade, há uma vibração, a parte histórica foi reconstruída e está fantástica.”

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