Lisboa é para comer e o Tejo sabe a Índia

São 12 mesas, cada uma feita por uma das comunidades que vivem em Lisboa – dos brasileiros aos ucranianos, dos chineses aos hindus. Juntas vão formar uma maquete da cidade na qual há telhados de chamuças e jardins de pizza. O Teatro Maria Matos convida todos a comer Lisboa este domingo

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Enric Vives-Rubio
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A que vai saber o Tejo? E os pilares da ponte 25 de Abril? Vamos poder comer as campas do Cemitério dos Prazeres? E a minha casa, será doce ou salgada?

Domingo, 5 de Julho. Falta ainda uma semana para a grande “performance comestível” Comer Lisboa, organizada pelo Teatro Municipal Maria Matos, mas numa das cozinhas do templo da comunidade hindu, um grupo de mulheres indianas, vestidas com túnicas coloridas, cozinha como se tudo acontecesse já amanhã. Coladas nos armários da cozinha estão imagens de alguns dos edifícios mais marcantes da cidade.

É preciso ensaiar. Não se pode deixar para a véspera a construção, em comida, de toda uma zona de Lisboa – neste caso, a área de Alcântara, incluindo aquele que é um dos maiores desafios deste projecto: a ponte 25 de Abril. Além disso, a comunidade hindu fez a proposta que acabou por ser a escolhida para representar todo o rio Tejo.

“Chama-se Bombay Karachi Halwa e é um doce indiano feito com farinha Maisena [amido de milho], ghee [manteiga clarificada] e açúcar, e pode ter a cor que nós quisermos”, explica Lajja, a responsável pelo departamento cultural da comunidade e coordenadora deste grupo, apresentando aquilo que será o Tejo. Neste caso escolheram as cores verde e azul, para fazer a água.

Uma das mulheres traz um recipiente com o halwa ainda quente e despeja-o sobre a enorme folha branca que cobre a mesa com parte do mapa de Lisboa. O doce azul espalha-se sobre a área correspondente ao Tejo, revelando pedacinhos de amêndoas, pistachios e cardamomo que representam os peixes.

Na cozinha, os outros elementos da equipa – Nalini, Rajeshree, Bharti, Anita e Nayana – preparam outras coisas. Uma delas faz mini chamuças que vão ser usadas para alguns dos edifícios, outra trabalha nos pilares da ponte, que serão feitos de farinha de arroz com um corante vermelho, enquanto o tabuleiro será de pão indiano e a parte da suspensão um fino colar de arroz tufado. Outra das mulheres traz-nos chá indiano e dá-nos a provar um doce tradicional, o gulab jamun, que aqui serve para fazer os pequenos carros espalhados pelas estradas de Alcântara.

Um dos pontos altos, garante Lajja, será a LX Factory. “Como é uma zona de boémia de Lisboa, quisemos fazê-la com a mais popular comida de rua indiana, o pani puri, que significa ‘bolas de água’. São pequenos bolos salgados e estaladiços, que se rompem com o polegar e nos quais se despeja um líquido muito saboroso, metendo-se depois inteiros na boca. “Qualquer dona de casa na Índia, quando vai comprar legumes, come sempre um pani puri na rua antes de voltar para casa”, conta Lajja.

Comer Lisboa é um projecto desenvolvido pelos “food artistas” Alicia & Co., grupo criado pela arquitecta espanhola Alicia Rios que parte da ideia de “urbanofagia”, ou seja, o desejo de “comer a cidade”. Já foram “cidades comestíveis” Londres (Eat London), Melbourne e Segóvia. Desta vez, em resposta ao convite do Maria Matos, os Alicia & Co. vieram até Lisboa para trabalhar com comunidades de diferentes origens étnicas e construir uma enorme maquete que será comida no próximo domingo.

Melisa, um dos membros do Alicia & Co, explica que Alicia Rios sempre se dedicou à comida, chegou a ter restaurantes, mas manteve também uma actividade académica que a levava todos os anos a um simpósio sobre comida em Oxford. “Queria falar, mas não se sentia confortável com o inglês, e foi então que decidiu apresentar uma performance em que com o corpo fazia uma espécie de mastigação, com um colchão e batatas fritas. A partir daí começou a ser convidada para encontros de arte.”

O trabalho foi evoluindo até que, em resposta a um convite de Melbourne, na Austrália, surgiu pela primeira vez a ideia de fazer uma cidade comestível. “O que lhe pediram foi um evento que envolvesse as comunidades. Uma das coisas muito bonitas num projecto destes é que a cidade é vista pelos olhos de pessoas que vêm de fora e que muitas vezes tiveram pouco tempo para a conhecer, para olhar a arquitectura.” Com esta performance, resume Alicia, “reinterpretamos o mundo à nossa volta usando comida”.

Montar um projecto destes exige muita preparação. Em Lisboa, o Maria Matos garantiu a parte logística e procurou facilitadores para trabalharem com cada comunidade. Na primeira reunião, no domingo 7 de Junho, as várias comunidades reuniram-se no teatro para ouvir Alicia e os outros membros do grupo explicar como é que as coisas iam funcionar e para ver imagens do projecto noutras cidades. Foi aí que se dividiu Lisboa em 12 zonas, confiando cada uma a uma comunidade, e se lançou o primeiro desafio: em que material (comestível) se iriam construir as áreas comuns, as estradas, as docas e o rio?

No fim-de-semana seguinte, as comunidades, acompanhadas pelos facilitadores, foram conhecer as respectivas zonas, fazendo o levantamento dos edifícios e começando já a pensar nas comidas que iriam usar para cada um – o que se lhe pediu foi que usassem ingredientes e técnicas tradicionais de cada cultura, e que garantissem que tudo seria não só comestível mas delicioso.

“Tamanhos, formas, sabores, cores, é preciso pensar nisso tudo”, avisou Bárbara, que também faz parte da equipa de Alicia. É preciso olhar para a cidade e passar a vê-la, dos palacetes às estátuas, dos viadutos aos arranha-céus, como comida. “Acreditamos que não somos as primeiras pessoas a querer comer o que os rodeia”, dizem, lembrando histórias como a da Casinha de Chocolate ou o filme Chovem Almôndegas, assim como o trabalho de outros artistas que usam a comida, ou o hábito “muito popular no Renascimento” de criar paisagens nos grandes banquetes.

Até que ponto estas ideias inspiraram ou não as comunidades, não sabemos. Mas algumas semanas depois, todos trabalhavam afincadamente para apresentar a melhor mesa possível na maquete de Lisboa comestível. Um dia antes da visita à cozinha da comunidade hindu, passámos por uma cozinha cedida pela Câmara Municipal para a comunidade ucraniana testar as suas ideias.

Taras, Natalia, Maxim, Hanna, Iryna, Svetlana e (outra) Natalia correm de um lado para o outro, atarefadíssimos. A Maxim coube a tarefa de ver como resultam aquelas que serão as bases de todos os edifícios: pão, ao qual ele tirou a côdea, barrado com manteiga e patê de atum. Iryna, que é a directora do Centro Educativo Rodyna, a escola ucraniana de Lisboa, está a preparar crepes de fígado de frango que serão usados para as campas do Cemitério dos Prazeres.

Hanna anda às voltas com uma pizza que representará as zonas verdes. Taras recheia waffles com carne picada e corta-as no feitio dos edifícios. De seguida serão fritas e colocadas umas sobre as outras para fazer prédios mais ou menos altos. Já foi testada, com sucesso, a ideia de usar bróculos e pepinos para as árvores. E Svetlana não tem mãos a medir: faz puré para um empadão e um pudim de esparguete com requeijão e açúcar. Tudo isto vai, de uma forma ou outra, ser Lisboa. Para comer.

O mais difícil na capital portuguesa, comparado com outras cidades comestíveis que o grupo fez, é o relevo, diz Bárbara, explicando que a maquete não será plana, mas acompanhará a topografia da cidade. Outro desafio (este não específico de Lisboa) é organizar as comunidades por zonas, sendo que, por exemplo, os hindus são lacto-vegetarianos e não podem fazer fronteira com zonas onde seja usada carne.

No domingo, às 19h, as 12 mesas vão sair, em procissão, do Maria Matos, onde as comunidades terão estado todo o dia a montá-las, e avançarão até às traseiras do teatro. Aí todos estão convidados para comer Lisboa. Cada comunidade irá oferecer uma receita de um prato tradicional e depois é só escolher se se quer derrubar a ponte ou engolir a cabeça do Marquês de Pombal. Seja como for, vale a pena provar o Tejo. Sabe a rosas.
 
Comer Lisboa – performance comestível
Junto ao Teatro Maria Matos
12 de Julho das 19h às 22h
Entrada livre

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