“Estou livre do medo de não poder continuar a escrever”

Richard Flanagan já teve tempo para perceber o que sentiu após receber o Man Booker Prize com A Senda Estreita para o Norte Profundo. Uma libertação pontuada de dor, o melhor e o pior do tempos. O pai morreu no dia em que terminou o livro, a mãe poucas semanas depois do prémio.

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Há um “e agora?” premente neste momento da vida de Richard Flanagan. Depois do romance decisivo, o que fazer? Ainda não retomou o ritmo. Levantar-se todos os dias às seis e meia da manhã, beber uma chávena de café bem preto e sentar-se à secretária Yves Gellie/ CORBIS

Era um fim de tarde de 2002 e Richard Flanagan caminhava pela Harbour Bridge, em Sidney, quando se recordou de uma velha história.

Tinha como protagonista um vizinho, um homem de origem lituana que vivia na pequena aldeia onde Richard nasceu. Contava-se que durante a II Guerra Mundial teve de abandonar a sua terra e que quando a guerra terminou e ele lá voltou não havia ninguém. A aldeia fora destruída. Disseram-lhe que a mulher tinha morrido. Ele recusou-se a acreditar e passou dois anos a procurar por ela. Por fim, teve de admitir que ela tinha morrido. Emigrou então para a Austrália, mais precisamente para Rosebery, povoação mineira na costa Oeste, onde casou com uma australiana e teve uma família. Em 1957 saiu de barco até Sidney e estava a andar por uma rua muito movimentada da cidade quando viu a sua anterior mulher caminhar na sua direcção, sem o ver, e levando um criança em cada mão. Uma das mais importantes decisões da sua vida teria de ser tomada ali, em poucos minutos.

“Cresci a pensar que era a mais bela das histórias”, conta Richard Flanagan numa conversa ao telefone a partir da Tasmânia, a ilha onde nasceu e onde vive, meses após ter vencido o Man Booker Prize com o romance A Senda Estreita para o Norte Profundo. O prémio, diz, tornou possível a continuação da sua vida literária.

Naquela tarde, Flanagan entrou a seguir num bar e escreveu durante horas tudo o que aquela história lhe sugeria, “a importância das escolhas e a sua capacidade destrutiva ou salvadora, o efeito surpresa e o quanto, nesse momento, a vida exige de nós”, continua, também agora num fim de tarde, a partir da sua casa na ilha da Tasmânia, onde nasceu em 1961. Estava encontrada a base do romance que ele não sabia bem o que iria ser, mas que falava de um australiano feito prisioneiro de guerra pelos japoneses na II Guerra Mundial, um dos 60 mil que iriam construir os 450 quilómetros de caminho-de-ferro entre o Norte de Banguecoque e a Birmânia, em 1943. A "linha da morte", como ficou conhecida, era um projecto central para os japoneses, construído com recurso a mão de obra escrava. O pai de Richard Flanagan fora um desses homens e sobreviveu.

O escritor escolheu falar do trauma colectivo partindo do trauma pessoal e decidiu fazê-lo sem julgamento. “Uma das melhores coisas na cultura japonesa é a literatura e, nela, Matsuo Basho [poeta do período Edo, 1644 e 1694]. Queria usar o que há de melhor na cultura japonesa para falar do que houve de mais baixo e que esteve naquela guerra imperial em que foram cometidos crimes hediondos. Quanto melhor eu usasse essa relação mais seriam as hipóteses de ter um bom livro, que não julgasse. Queria olhar para aqueles homens. Pensei que se pudesse ter um história de amor no centro de um livro sobre um prisioneiro de guerra que achou ter perdido o amor da sua vida teria o necessário para que a romance funcionasse”, conta Flanagan, explicando também o título, réplica de uma frase de Basho, o poeta que dois responsáveis pelo exército imperial japonês citam nos intervalos do horror que promovem. Basho, dizem eles no romance, é um dos exemplos do “dom supremo do Japão”, o dom de “retratar tão concisa e maravilhosamente a vida”. Na interpretação daqueles militares, no ano de 1943 esse dom materializa-se no “objectivo supremo”: a construção do caminho-de-ferro. 

Estamos no complexo terreno das contradições que Flanagan constrói recorrendo às ferramentas da concisão e clareza de Basho. O horror e o amor a nu. Num e no outro pode-se estar no inferno. “As histórias de amor têm regras muito concretas. Os romances não. Quando escrevo sobre o amor tenho de ir por uma verdade psicológica, e talvez pela verdade mais profunda de todas que se revela quando descobrimos a eternidade, só que nesse preciso momento em que nos encontramos eternos, descobrimo-nos efémeros. É sempre luz e escuridão”, como no momento em que o homem encontra a mulher em Harbour Bridge. E se tudo falhasse?
Estes eram os pressupostos do romance. Flanagan demorou doze anos a concretizá-lo. “É como lembrar uma nuvem”, afirma sobre o longo processo de escrita daquele que seria não apenas o seu sexto romance, mas um livro que sentiu crucial, como se tudo o que escreveu até então fosse um ensaio para aqui chegar. “Escrever um romance é uma parte muito misteriosa da minha vida. Este levou-me muitos anos e às tantas eu já não o queria escrever. Percebi que era um livro que não permitiria que fosse mal escrito por isso lutei tanto para que saísse bem. Tinha muito medo de falhar, de não conseguir, mas por outro lado esse medo não me deixava avançar. Percebi também de que se não escrevesse este livro numa mais escreveria nada. Eu tinha de ser capaz de o escrever para poder continuara escrever.” Esta ideia é sublinhada ao longo da conversa. Este era um projecto derradeiro, pela exigência, pelos desafios, pela dureza da escrita e pelo tempo que lhe tomava o que, no seu caso, significava reduzir a nada as suas economias. Se falhasse teria de encontrar um meio urgente para “alimentar a família”.

O livro foi escrito e no dia em que o terminou o pai morreu, aos 98 anos. Horas antes, ainda lhe contara que tinha terminado o manuscrito. O pai não era Dorrigo Evans, o protagonista, também natural da Tasmânia, também prisioneiro, homem ambíguo, um cirurgião que joga o jogo que lhe mandam jogar, herói e cobarde, condenado ao trauma da guerra que não põe, no entanto, acima do trauma da perda do amor. O pai de Richard Flanagan fora, ao longo dessa escrita, uma figura tutelar, guia para as emoções mais íntimas que descreve com a frieza de um narrador que tudo sabe mas nada sente. “Quando se é verdadeiro na escrita, apercebemo-nos que o melhor de nós, seja lá isso o que for, está no livro e quanto ao resto não há muito mais a dizer”. Não é preciso dizer ‘eu’, não é preciso ser autobiografia. É de outra verdade que Flanagan fala e que lhe permanece misteriosa sempre que associada à ficção. É alguma coisa que se diz e não se pode repetir muito da mesma forma ou começa a ser mentira. “A cada livro sinto que os escritores não se devem repetir; quando uma verdade foi dita, o que se continua a dizer, se tudo se mantiver igual, torna-se uma espécie de mentira e, às tantas, o escritor está apenas a alimentar-se a si próprio tirando o alimento ao leitor. É preciso estar sempre à procura de um novo modo, uma nova maneira para essa verdade. A forma é fundamental.”

Em A Senda Estreita para o Norte Profundo é isso que sente ter acontecido: alguma verdade saiu. é um livro em quase tudo diferente de O Livro dos Peixes de Gould, romance de 2001 que confirmou Richard Flanagan como um nome a seguir e que muitos críticos viram como próximo do realismo mágico. Havia poesia e alguma redenção. Neste, não há deus nem diabo. O tema, o tom, a forma mudaram. 

“É misterioso, estranho, imprevisível. Os leitores podem ver que este é um livro muito pessoal, mas cada livro é sempre muito pessoal para um escritor; isso pode é não ser assim tão aparente ao leitor. Porque é que este é? Conhece Fernando Pessoa e sabe que o seu trabalho, as suas palavras, são profundamente pessoais. No entanto, tem de saber muito mais da vida dele para perceber até que ponto elas foram pessoais de uma forma linear. Todos este processo é mais interior para alguns escritores do que para outros, mas alguns romances são mais pessoais apenas aparentemente”, refere sobre o tal livro estranhamente libertador.

Nos dias a seguir ao Booker, uma jornalista perguntara-lhe o que sentia com aquele prémio e Flanagan respondeu-lhe que andava demasiado ocupado com entrevistas e viagens para perceber de facto o que andava a sentir. Passaram sete meses. Do outro lado da linha, a voz grave num inglês revelador das suas origens, já arrisca uma resposta: “Tenho uma experiência estranha com este prémio. A minha mãe morreu umas semanas depois. Foi o melhor dos tempos com o pior dos tempos. Isso permitiu-me não ficar extasiado no momento em que conseguia ser livre na minha vida enquanto escritor. Livre do medo de tudo ter acabado e de não ser capaz de escrever outro livro. Eu estava sem dinheiro. Venho de um lugar longínquo e é uma luta prosseguir enquanto escritor. Um dos meus principais medos era não saber se poderia continuar a escrever. Estou livre desse medo, de não poder continuar a escrever. Isso foi muito libertador para mim, foi uma coisa transcendental.”

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ULF ANDERSEN

O romance enquanto modo de pensar 
Estar na cabeça de Dorrigo Evans não foi um inferno, garante. “Foi uma maneira de pensar, um modo de meditar na vida”. A afirmação serve-lhe também para referir que não houve uma ideia, mas várias, a determinar o livro. Não há um porquê ou uma razão. É algo que aparece e começa a existir de uma determinada maneira: “Acho que quando um romance finalmente começa a funcionar, a fazer sentido, é como se o universo fizesse também sentido, ganhasse vida. Tudo à volta fica mais eléctrico, e de repente existe para me revelar uma verdade, tenho a impressão de que o universo existe com um propósito e liga-se a mim e eu a ele. Sinto uma enorme excitação enquanto estou a escrever. É um privilégio poder estar sentado à mesa e sonhar com estas coisas. Este processo de escrita permite-me perceber melhor a qualidade de certos livros, de certos escritores. Desta experiência, é mais fácil apreciar o génio. Além disso, encoraja a chegar a alguma espécie de verdade.” 

E é quase sempre quando está nesta que fase sai da casa onde vive com a mulher e os três filhos para se isolar na ilha de Bruny. Fica a poucas centenas de quilómetros a sul da Tasmânia. “Em casa há sempre muitos amigos a bater à porta, para um copo ou um café. Quando não quero sair do romance tenho de fugir e a ilha de Bruny é um lugar muito bonito e sossegado. Costumo ir para lá quando tenho de me concentrar no trabalho, quando tenho de trabalhar todos os dias, muitas horas por dia.” Flanagan faz uma pausa. “Eu sei que depois de ter escrito tantos livros eu já devia escrever mais depressa, mas não sou capaz. É um problema, tenho de acelerar”. Uma gargalhada remata o desabafo e retoma então a ilha. “Gosto de estar lá porque não há nada entre mim e o trabalho. Só o romance. É quando vivo no romance e não perco a sua música. Um romance tem muito de música e composição e é muito fácil perdermos o embalo. A melodia, os ritmos, os batimentos. Sinto que se tiver períodos concentrados de tempo em Bruny consigo esse encontro, essa intimidade. Vou lá muito para terminar livros, sem interrupções. Sou eu e o mar e posso nadar, pescar…”

Um dia referiu-se àquela ilha como um lugar com um grande sentido do irreal. “É isso, talvez, o que me prende ali”, refere enquanto fala da sua identidade literária, construída numa ilha que pertence à Austrália, mas mais próxima de “uma terra italiana” pelo modo como se vive, mas também pela paisagem. Foi povoada por europeus expulsos da Austrália, quase todos prisioneiros condenados ao isolamento e a trabalhos forçados. Flanagan descende de irlandeses, e a geração do seu pai foi a primeira a ter escolaridade. Garante, no entanto, que a língua é o que tem de mais próximo com a literatura inglesa. “Os escritores ingleses têm muito pouca influência em mim. Não leio muito romances ingleses. Não por achar que são maus, simplesmente não os leio muito. Leio muito mais escritores centro-europeus do século XX”, adianta. Fala de Kafka e Faulkner, mas também Cortazar, Tolstoi, Chekov, Philip Roth, Pessoa. “Li-o muito durante algum tempo”, e refere: “Enquanto escritor, pertenço ao país onde vivo, mas também ao universo de livros que li e posso ler e é impossível estar sozinho nestes dois mundos.”

Vive num “país longínquo”, mas não se sente solitário nem que a sua literatura reflicta muito o sentimento que reconhece na tradição do romance europeu. “A minha experiência não é de solidão. Cresci numa família numerosa, sou um de seis filhos, um de 51 primos, o sítio onde moro é muito vivo. E, independentemente do que desejava ou não ser, foi sempre muito claro que eu existia através das pessoas que me amavam”, refere. O livro que lhe valeu o primeiro Booker aberto ao universo anglófono e o tornou no terceiro autor australiano distinguido, depois de Peter Carey e de Eleanor Catton, reflecte essa marca: a dos que ama. 

É essa a sua singularidade, mais do que ser do país onde nasceu. “Tenho 54 anos, o mundo editorial australiano é mais novo. Terá uns 43 anos”, faz contas. “Há pouco falou em Tomas Keneally [n. Sidney, 1935]. Ele foi o primeiro escritor a viver dos seus romances aqui na Austrália. As pessoas que escreviam tinham de sair para conseguir viver da escrita. Era preciso ser publicado em Londres ou Nova Iorque. Não temos uma tradição. Tudo é novo e extraordinário.” Resiste, contudo, a falar de literaturas nacionais. “Não penso em escritores como portugueses, angolanos ou australianos. A literatura é muito pessoal. Podemos ser o que quisermos nas circunstâncias que temos. A geografia e a língua marcam, mas é a individualidade que me interessa, a experiência pessoal sobre o um tempo e lugar, a liberdade que pode haver nisso.” E é nesse sentido que se diz mais próximo de alguns autores brasileiros, chilenos ou argentinos do que de ingleses. E pergunta: “Seria Faulkner um escritor americano ou latino-americano? No início, os americanos rejeitaram-no, durante 15 anos ele foi mantido vivo literariamente pelos latino-americanos. Será que os autores brasileiros pertencem à tradição literária portuguesa? Talvez a língua, mas não tanto a cultura. Há um mundo que encontro em Pessoa e não encontro em nenhum escritor inglês. Isto não é crítica. Há autores ingleses fantásticos, mas não são uma referência, não me ajudaram a entender o meu mundo pessoal ou a definir-me enquanto escritor. O fantástico da literatura é eu poder reconhecer-me na Rússia do século XIX ou na França do século XX através de um romance. Encontrar-me em muitos tempos e em muitos lugares.” 

Como não se insurgir contra a ideia do fim do romance enquanto género? “É uma ideia que não deve ser levada muito a sério como muitas ideias más. Está ligada a um profundo medo da fantasia, que é muito norte-americano. O romance é um das mais elevadas criações estéticas e espirituais de que o ser humano foi capaz para se entender. A capacidade de contar histórias é uma das conquistas mais notáveis da humanidades e o romance é a forma mais sofisticada. Se o romance não fosse importante, não estaria agora a falar consigo da Tasmânia para Lisboa. Nos romances encontro-me, uma e outra vez. Um escritor escreve de uma forma concreta e consigo encontrar-me nos seus mundos particulares. É uma linguagem universal.”

Há um ‘e agora?’ premente neste momento da vida de Richard Flanagan. Depois do romance decisivo, o que fazer? Ainda não retomou o ritmo. Levantar-se todos os dias às seis e meia da manhã, beber uma chávena de café bem preto e sentar-se à secretária. “Não há nada de muito excitante nisto, há mesmo muito pouca acção para quem assiste”, nota, a rir, sobre uma experiência que, no seu caso, tem sempre muito de reescrita. Talvez por isso diga que é mais um re-escritor do que propriamente um escritor. “As frases não me saem perfeitas à primeira. Tenho de trabalhar muito”, justificam e essa forma final precisa de “uma tremenda paciência, de um lento trabalho de apuramento, artefacto, frase após frase. Acho que foi o escritor brasileiro Machado de Assis que disse que uma frase liga-se à outra e dessa forma uma revolução acontece. Será mais ou menos isto?” 

Leia aqui o excerto do livro A Senda Estreita para o Norte Profundo

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