Passos Coelho no Portugal do Primeiro Mundo

Nas últimas semanas não parece haver no país queijaria que Pedro Passos Coelho não visite, cerimónia que não presencie ou sessão solene em que não intervenha.

Como notava Miguel Sousa Tavares no Expresso deste sábado, o primeiro-ministro tornou-se uma figura omnipresente com o avançar da pré-campanha eleitoral e a “incontinência verbal” colou-se-lhe à pele de forma indelével. Com tanto discurso para fazer, é normal que a palavra descaia para o disparate e que a mensagem se torne fonte de irritações. Aconteceu esta semana, por exemplo, quando Passos Coelho foi às Caldas da Rainha homenagear D. Leonor e dizer que “Portugal vive no primeiro mundo”. Para que não sobrassem dúvidas, acrescentou que somos “considerados como um país rico no mundo” e “comparamos com as nações de maior prosperidade do mundo”. Somos mesmo? Comparamos?

Custa a crer que o comum dos mortais que um país vergado a uma intervenção externa para se salvar da bancarrota, com 35% dos jovens no desemprego e uma dívida acima dos 125% do PIB possa reclamar para si tantos e tão belos atributos. Até porque esta mensagem não cola bem com a doutrina da austeridade salvífica, do ajustamento regenerador e da recuperação dos pequenos passos que o Governo tem cultivado. E ainda menos à sempre mais útil apologia da “vida nova” que exige mudanças no Estado e nas mentalidades. Passos, desta vez, passou por cima do futuro e escolheu o presente como um bom lugar para se viver, com prosperidade e classe mundial. Não admira por isso que nas redes sociais tenham abundado críticas, a oscilar entre a indignação e o insulto. Muitos dizem que ele entrou em transe, que delira, que gostavam de viver no país dele, que mente, que não ousa a meios para se reeleger. Dizer a quem resiste que Portugal é um país mais perto do mundo dos ricos do que do mundo dos pobres é um atentado.

A verdade é que Passos tem parcialmente razão. Os números e os rankings das principais organizações internacionais estão com ele. Portugal é uma das 37 economias que integram o grupo avançado (o que se move pela inovação) da análise do Fórum Mundial da Competitividade. Em termos de produção de riqueza (o famoso PIB) estamos no lugar 48 de uma lista de 192 países recenseados pelo Fundo Monetário Internacional. Depois, se centrarmos a riqueza nacional por pessoa (o PIB per capita), Portugal sobe na escala e situa-se no lugar 36. Se a isto juntarmos um sistema científico com um rácio de investigadores em relação à população acima da média da OCDE, um sistema de saúde apesar de tudo competente, um sistema de ensino superior desigual mas em certos casos de vanguarda, uma infra-estrutura entre as melhores do mundo (a análise é do Relatório Mundial da Competitividade), podemos dizer que Passos pode dizer o que disse. Nas estatísticas, somos mais do Primeiro Mundo do que do segundo ou do terceiro.

Mas bem sabemos que indicadores e rankings não se servem à mesa nem dão para medir os índices de conforto, de felicidade ou de qualidade de vida. São meros apêndices das análises que responsáveis pela governação têm o dever de usar apenas como contexto, como ponto de partida para colocar perguntas, para formular diagnósticos, para anunciar insatisfação e meios para a vencer. Porque, por muito que consideremos que Portugal conseguiu resistir sem estourar a um dos mais cruéis desafios da sua história recente (um ajustamento duríssimo sem poder jogar com a política cambial), também é verdade que hoje em termos sociais, de emprego, de confiança, de investimento, de estratégia e de dinâmica social ou económica é um corpo doente e desmoralizado. O que permite a Pedro Passos Coelho dizer que “comparamos” com os países ricos foram conquistas das últimas décadas, conquistas que a força das circunstâncias da crise, o radicalismo do ajustamento e as debilidades congénitas do país estão a pôr em causa.

Há sim um país europeu, com empresas de classe mundial, com gestores, investigadores, médicos, professores, operários, arquitectos ou engenheiros ao nível da melhor Europa. Mas também há gestores, operários ou enfermeiros que ficariam melhor colocados nas paisagens do terceiro mundo. É isso que torna Portugal o país mais desigual da Europa, que coloca um quarto dos trabalhadores a receber salários que os aprisionam no limiar da pobreza, que cria 460 mil desempregados de longa duração condenados a viver no ostracismo social ao descobrirem que o país onde conseguiram fazer uma vida digna sucumbiu às ondas de choque e já não volta mais. É por isso que 31,6% das crianças e jovens vivem em risco de pobreza, que há 400 mil idosos a viver sozinhos, que todos os anos emigram mais de 100 mil pessoas, que mais de metade dos jovens está disposta a deixar este país de “prosperidade” e arriscar uma vida nova no estrangeiro. Nesta comparação, Portugal é mais o Brasil do que a Noruega, como certamente sabe o primeiro-ministro. A maior desgraça destes anos de chumbo é a travagem na fusão do país dual que resiste há mais de 50 anos.

As sequelas do subdesenvolvimento e do atavismo salazarista são ainda graves de mais para que o primeiro-ministro nos venha colocar num estágio de desenvolvimento que uma grande parte da população sabe ser apenas uma construção estatística. As raízes do atraso são demasiado grossas para se arrancarem de um momento para o outro. As mentalidades rentistas, subservientes e em alguns casos venais da velha elite económica persistem. A concepção oligárquica e clientelar dos partidos, geradora de um espírito de clã que os impede de celebrar compromissos em nome do interesse nacional, está ainda demasiado arreigada para que a politica seja um bem de utilidade pública. O centralismo medieval com que se pretende governar um Estado moderno tem ainda demasiados interesses em seu torno para que possa ser demolido.

Se Passos é o gestor de uma herança, é também o personagem do qual se espera uma solução para os seus espartilhos. Fica-lhe melhor recusar atitudes “piegas” e propor uma visão sobre o "homo portucalensis versão 3.0" do que a falar de um país quimérico – um desejo é sempre menos questionável do que uma realidade. A recuperação da teoria cavaquista do oásis faz menos sentido do que nunca. Quando as teorias dos políticos são percebidas pelos cidadãos como delírios da estratosfera, não há nada de bom a esperar.

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