Piketty em Lisboa e o culto igualitário da pobreza

O mais efectivo instrumento de combate à pobreza, como repetiu Winston Churchill, é a liberdade.

A visita de Thomas Piketty a Lisboa, na passada segunda-feira, produziu um curioso impacto político. Não é todos os dias que um académico, convidado por uma instituição cultural independente, aceita avistar-se com um candidato a primeiro-ministro e com um candidato a presidente da república, ambos da mesma área política. Como observaram vários analistas, não é seguro que esta politização tenha valorizado o argumento intelectual de Piketty.

Outro elemento curioso desta visita foi a aceitação quase unânime entre nós do alegado problema colocado por Piketty: o problema da desigualdade de resultados nas economias ditas capitalistas.

Toda a gente parece concordar com a asserção de que existe à partida um problema na desigualdade de resultados (a qual deve ser distinguida da pobreza e da exclusão social). Por essa razão de partida, o problema seria ainda maior se a desigualdade de resultados estivesse a aumentar (o que, aliás, não está comprovado).

Peço autorização para duvidar (e espero que, dado que ainda não entrámos em campanha eleitoral, a autorização me seja concedida, sem visto prévio de uma comissão central): não me parece evidente que a desigualdade de resultados seja em si mesma um problema — a menos que a liberdade seja percepcionada em si mesma como um problema.

Com efeito, se partirmos de uma presunção favorável à liberdade, seguir-se-á que todos os indivíduos devem ser igualmente livres perante a lei — isto é, em princípio livres, desde que não violem a lei. Indivíduos igualmente livres vão poder agir diferentemente. Das suas diferentes acções resultarão diferentes resultados. Logo, da igual liberdade perante a lei resulta a desigualdade de resultados.

Pelo contrário, se partirmos de uma presunção favorável à igualdade de resultados, seguir-se-á que os indivíduos não podem, em princípio, ser igualmente livres perante a lei. Eles só poderão ser livres de escolher acções que uma autoridade central previamente possa autorizar — com base na previsão de que essas acções não vão produzir resultados desiguais. E, caso alguma acção previamente autorizada tenha produzido uma desigualdade, o resultado dessa acção autorizada deve ser anulada para restaurar a igualdade (talvez através de um severo imposto ou, quem sabe, de uma “nacionalização”).

Estas duas perspectivas estão subjacentes ao choque fundamental entre as sociedades livres, também chamadas capitalistas, e as sociedades comandadas (comunistas, ou fascistas, ou, em grau menor, de “condicionamento industrial” do Doutor Salazar ou do despotismo esclarecido do Marquês de Pombal). Nas sociedades livres, tudo é permitido, a menos que seja explicitamente proibido pela lei geral. Nas sociedades comandadas, tudo é proibido, a menos que seja expressamente permitido por uma prévia autorização particular.

Muitos autores observaram este choque entre “a sociedade aberta e os seus inimigos”, desde a Grécia antiga até aos nossos dias. Mas foi talvez David Hume quem melhor captou os resultados da preferência pela igualdade em detrimento da liberdade: a pobreza e o despotismo. Disse ele, em 1777:

“Por mais igual que se torne a distribuição da riqueza, os diferentes graus de arte, interesse e indústria dos homens destruirão imediatamente essa igualdade. Ou, se controlarmos essas virtudes, reduziremos a sociedade à mais extrema indigência; e, em vez de evitarmos a necessidade e a penúria em alguns indivíduos, torná-las-emos inevitáveis para toda a comunidade. Será necessária também a mais rigorosa inquirição para detectar todas as desigualdades assim que elas surjam, bem como a mais severa jurisdição para as punir e corrigir.”

Por outras palavras, os povos que preferem a igualdade à liberdade vão produzir mais pobreza. Perante a pobreza, vão exigir ainda mais igualdade. E obterão mais pobreza. Quando descobrirem que outros povos estão a produzir riqueza, exigirão que a igualdade seja estendida a esses povos (talvez através de um “imposto global”). Obviamente, se isso fosse aceite pelos outros, todos ficariam mais pobres — mas seguramente também mais iguais, na pobreza.

Em tudo isto, como repetiu Winston Churchill, apenas fica esquecido que o mais efectivo instrumento de geração de riqueza e de combate à pobreza é a liberdade.

Maria Barroso: Amigos e admiradores de vários quadrantes políticos assinalaram justamente os 90 anos de Maria Barroso. Ela tem sido uma referência impar na causa da liberdade e do combate à pobreza e exclusão social. Em grato reconhecimento, o IEP-UCP atribui-lhe há dois anos o Prémio (anual) Fé e Liberdade.

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