A guitarra carbura como desejado

O segundo álbum a solo de Peixe é valsa rockada e folk valseada

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Um homem, uma guitarra clássica e tudo o que pode acontecer entre os dois: eis Peixe, tal como o apresenta o seu segundo álbum Adriana Oliveira
Apneia

 foi a primeira apresentação com o nome de guerra, Peixe. 

Apneia

, álbum editado em 2012, mostrou-nos o outro lado do guitarrista: nele, não ouvíamos aquilo que Peixe fizera nos Verões passados com os Ornatos Violeta e ali não estava igualmente a viagem em modo banda-sonora para filmes imaginários dos seus Zelig!. Peixe surgia ali em contacto mais íntimo, mais directo, com a sua criatividade. Um homem, uma guitarra clássica e tudo o que pode acontecer entre os dois. 

Motor

 é Peixe a reincidir. Novamente a guitarra clássica, ocasionalmente acompanhada pela flauta transversal de Nico Tricot. 

Num tempo em que a disponibilidade geral para as peças instrumentais em guitarra acústica é elevada, e num tempo que, em Portugal, tem músicos como Norberto Lobo ou Filho da Mãe a criarem dessa forma um percurso sólido e entusiasmante, já marcado de forma vincada na música do nosso tempo, procuramos no encontro com um álbum como Motor a revelação de uma linguagem expressa nas seis cordas que nos conduza a uma verdadeira identidade. Tal já estava sugerido em Apneia, mas é em Motor que se apresenta definitivamente perante nós.

Peixe é um homem formado no rock e a energia dessa música mostra-se presente (ouça-se a tensa caminhada de Suite). Mas Peixe é também, percebemo-lo aqui, um guitarrista que se deixa contaminar pela memória, pela melancolia do tempo que passou, e por um certo espírito de lugar: e eis então o dedilhado para Verões passados ao ar livre, lá longe na infância (não será isso Despassarado?), eis como a Valsa do cowboy enamorado, na dança entre guitarra e flauta, é ouvida como reminiscência de melodias populares perdidas no tempo, devidamente transformada pela imaginação do seu autor: se há cowboy aqui, é italiano e dança em terreiro do interior português. 

Motor

 mostra mais: o prazer em revisitar paisagens folk de outras paragens (

20 piscinas

 avança decidido, com sensibilidade certeira, pelas paisagens galesas da Bron-Yr-Aur imortalizada nos instrumentais de Jimmy Page para os Led Zeppelin) ou o talento para, com uma simples figura de guitarra, “fazer” toda uma peça: 

Lamento imenso

, de um romantismo cheio, pleno, inicia-se com uma melodia em queda absurdamente tocante — dêem-nos aqueles segundos e nada mais e tudo estará bem no melhor dos mundos.

O segundo álbum a solo de Peixe é valsa rockada e folk valseada. É atravessado pela doçura da memória e pelo prazer em fazer das cordas da guitarra um desafio permanente: não para a vencer com exibição de virtuosismo, mas para procurar nelas forma de exprimir devidamente as ideias e emoções que atravessam a mente do guitarrista quando a sós com o instrumento que escolheu. O desafio continuará. O motor carbura como se deseja.

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