Guerra sem fim à vista em Debaltseve num cessar-fogo que nasceu frágil

Exército ucraniano recusa render-se aos rebeldes pró-russos, para quem a trégua não abrange a cidade na província de Donetsk. Recuo das armas posto em causa.

Foto
Soldado ucraniano perto de Svitlodarsk, na região de Donetsk ANATOLII STEPANOV/AFP

As várias iniciativas para travar a guerra no Leste da Ucrânia têm exigido uma certa ginástica na interpretação do termo "cessar-fogo", que passa por fechar os olhos aos combates nas estratégicas cidades de Debaltseve e Mariupol desde que as armas estejam caladas na generalidade da linha da frente.

Desde a entrada em vigor da trégua, na passagem de sábado para domingo, já foram mortos pelo menos cinco soldados ucranianos, todos nas proximidades de Mariupol, uma cidade portuária controlada pelas forças ao serviço do Exército de Kiev e cobiçada pelos separatistas pró-russos.

Mais a Norte, a meio caminho entre os bastiões separatistas de Donetsk e Lugansk, milhares de soldados ucranianos estão cercados na cidade de Debaltseve, no centro de uma batalha alheia ao acordo assinado na quinta-feira da semana passada em Minsk, capital da Bielorrússia.

Até ao final da manhã desta segunda-feira – 36 horas depois do início do cessar-fogo –, o Exército ucraniano tinha registado mais de uma centena de ataques por parte dos separatistas pró-russos, a maioria na zona de Debaltseve, e os rebeldes tinham denunciado três dezenas de ataques lançados pelas forças fiéis a Kiev.

Os cinco soldados ucranianos foram mortos em Shirokine, na costa do Mar de Azov, mas os combates mais intensos e violentos registam-se quase 200 quilómetros a Norte, em Debaltseve.

A batalha por esta cidade esteve quase a fazer implodir as negociações em Minsk, na cimeira que juntou a chanceler alemã e os Presidente de França, Rússia e Ucrânia. Segundo o relato dos pormenores das 16 horas de negociações na capital da Bielorrússia, feito por nove jornalistas na revista alemã Der Spiegel, os separatistas pró-russos nunca aceitaram desistir da conquista de Debaltseve, e o Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, nunca aceitou admitir que as suas tropas estavam cercadas.

Foi depois de uma conversa com o Presidente russo, Vladimir Putin – já na manhã de quinta-feira, ao fim de várias horas de negociações – que os líderes separatistas acabaram por dar o seu aval ao cessar-fogo, mas os pormenores dessa negociação em particular não são conhecidos.

Nesta segunda-feira, a chanceler alemã, Angela Merkel, repetiu o que tem dito desde que assumiu o protagonismo na mediação da crise no Leste da Ucrânia, numa confirmação de que o seu pragmatismo se baseia em pouco mais do que numa boa dose de esperança: "A situação é frágil. Não é algo inesperado, em particular no que se refere a Debaltseve. Sempre ficou claro que é preciso fazer muito mais. E eu sempre disse que não há garantias de que as nossas tentativas vão ser bem-sucedidas. Vai ser um caminho extremamente difícil."

Na noite de sábado para domingo, na declaração em que ordenou às suas tropas o cumprimento do cessar-fogo, o Presidente ucraniano manteve a posição de que a situação em Debaltseve não podia ser descrita como um cerco, já que o Exército da Ucrânia teria ainda o controlo sobre uma estrada por onde era possível receber reforços e garantir a rotação dos combatentes – é esse o argumento em que Kiev se baseia para continuar a defender que Debalsteve era sua no momento em que o cessar-fogo entrou em vigor. Do outro lado, os rebeldes pró-russos mantêm que os soldados ucranianos devem abandonar a cidade ou sofrer as consequências de um cerco.

Já nesta segunda-feira, os líderes das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk propuseram a abertura de um corredor para que os soldados ucranianos pudessem sair de Debaltseve, mas a ideia foi prontamente rejeitada pelo Governo da Ucrânia.

"Sugerimos que os soldados ucranianos que estão em Debaltseve continuem vivos. Só há uma condição: deponham as suas armas. Nem falámos sobre a possibilidade de serem feitos prisioneiros. Deponham as armas e saiam daqui", disse um dos comandantes rebeldes, Eduard Basurin.

O porta-voz do Ministério da Defesa ucraniano, Vladislav Selezniov, disse à agência Reuters que essa hipótese nem iria ser discutida: "Segundo os acordos de Minsk, Debaltseve é nossa. Não vamos sair."

Segundo o acordo assinado na semana passada, a retirada do armamento com vista à criação de uma zona-tampão com um máximo de 140 quilómetros deveria começar nesta segunda-feira, mas nenhuma das partes está preparada para cumprir essa importante parte de um eventual processo de paz – os rebeldes dizem que só recuam depois de o Exército ucraniano começar a recuar; e Kiev diz que só começa a recuar se os rebeldes deixarem de atacar Debaltseve e Mariupol.

Para além de ser um importante nó ferroviário, cuja conquista permitiria aos rebeldes ligar as cidades de Donetsk e Lugansk, Debaltseve é também um ponto essencial para a estratégia de expansão do território das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk, à semelhança de Mariupol, mais a Sul – a partir de Debaltseve e de Mariupol, os rebeldes pró-russos poderiam lançar ataques contra outras cidades controladas pelo Exército ucraniano até às fronteiras das províncias de Kharkov, Dnipropetrovsk e Zaporizhia, para ficarem mais perto do objectivo de assumir o controlo da totalidade dos territórios das actuais províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk, na fronteira com a Rússia.

Em dez meses de guerra no Leste da Ucrânia já morreram mais de 5400 pessoas, quase 13.000 ficaram feridas e 980.000 foram forçadas a abandonar as suas casas, segundo as estimativas das Nações Unidas. A própria ONU admite que estes números podem estar subavaliados, e os serviços secretos alemães acreditam que o conflito pode já ter feito pelo menos 50.000 mortos.

Sugerir correcção
Ler 80 comentários