Europa, o terreno escolhido para o conflito

Uma invasão dos territórios ocupados pelo Estado Islâmico com 20 mil soldados dos EUA, admitida por alguns sectores norte-americanos, provocará novas ondas de choque. Os 50 mil muçulmanos residentes em Portugal sentem-se integrados, garante o imã da Mesquita de Lisboa, David Munir.

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“Quem faz o terrorismo pelo Islão, fá-lo onde está, não precisa de se deslocar”, afirma o general Loureiro dos Santos BERTRAND GUAY/AFP

É uma evidência. A Europa é o terreno escolhido pelos radicais islâmicos para o conflito que, afirmam, os opõe ao Ocidente. São as antigas potências coloniais a ser sacudidas por atentados e a sofrerem a pressão de medidas securitárias que podem alterar o registo da cidadania naqueles países.

“O drama da Europa é estar ausente [da situação no Médio Oriente], embora seja um dos principais alvos. É em solo europeu que existe uma percentagem considerável de muçulmanos ”, afirma ao PÚBLICO o general Loureiro dos Santos. O especialista militar refere-se a países como a Alemanha e a França. E recorda a forma simbólica, e reveladora, como é apelidada a capital britânica: "Londondistão". “Quem faz terrorismo pelo Islão fá-lo onde está, não precisa de se deslocar, por isso o terrorismo na Europa vai aumentar”, prevê.

“O mais profundamente errado é que a lógica contra o terror dominante na opinião pública dos Estados Unidos está a ser importada em termos políticos, mediáticos e securitários pela Europa”, lamenta o sociólogo Boaventura Sousa Santos: “Esta alteração tem mais impacto devido à força da comunidade islâmica na Europa. E ataca: “Em princípios de Dezembro, foi proibido um seminário sobre islamofobia no Birkbeck College da Universidade de Londres e, na semana passada, na Universidade Livre de Amesterdão também foi cancelado um seminário do mesmo tipo.”

“O território da guerra vai ser a Europa, nos Estados Unidos as comunidades árabes já estão integradas, na Europa estão guetizadas”, considera, por seu lado, Ângelo Correia, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Árabe-Portuguesa. O também cônsul da Jordânia em Portugal não desresponsabiliza o mundo árabe. Mas insiste nos erros do Ocidente: da invasão do Iraque de Saddam às 'primaveras árabes', que romperam equilíbrios delicados.

“As 'primaveras árabes' foram um cocktail, entre gente que queria a liberdade e os radicais”, afirma Ângelo Correia, também antigo ministro e dirigente do PSD: “O discurso de promoção da democracia por parte do Ocidente é uma quimera, depois das ditaduras pode haver uma coisa pior.” Como ocorre na Líbia, um Estado falhado, cujo território tem múltiplos controlos militares de vários países e alberga campos de treino do autoproclamado Estado Islâmico (EI).

É de alerta a posição das diplomacias europeias sobre a situação líbia. Um território sem controlo efectivo, que é corredor de passagem dos mais variados tráficos – de armas, droga e de seres humanos – oriundos do verdadeiro caldeirão em ebulição que é a área do Golfo da Guiné.

Aliás, não deixa de ser curioso que a questão da construção do Estado Palestiniano e a sobrevivência de Israel, tema sempre presente no Médio Oriente, tenha desaparecido como álibi do terrorismo do EI.  “Admito que se mantenha esse pano de fundo, como papel de justificação fundadora, mas há realidades novas que o substituíram”, assinala Loureiro dos Santos.

“A questão israelo-palestiniana não está presente no discurso do EI", constata Boaventura Sousa Santos: “O Ocidente tem interesse em dissolver o mundo islâmico, como o interesse do EI é a ruína do nacionalismo árabe e da proposta de distância relativa entre a religião e o Estado.”

“Esqueceram-se do conflito israelo-palestiniano que é a origem de todas as suspeitas, não o utilizam, embora para os árabes seja essencial”, afirma Ângelo Correia. Nas afirmações do general Loureiro dos Santos pode estar a explicação desta omissão. “Foi o Ocidente que originou o EI, foram dois erros estratégicos dos Estados Unidos: a invasão do Iraque; e a insurreição na Síria.” O sociólogo Sousa Santos aponta o dedo: “A Arábia Saudita e o Qatar são as forças mais obscuras do Médio Oriente.”

A evolução nos territórios controlados pelo EI também não augura nada de bom. “Mais cedo ou mais tarde, tem que haver uma intervenção militar no terreno, por parte dos Estados Unidos, como já disse Martin Dempsey, presidente da Junta dos Chefes de Estado-Maior. Segundo alguns cálculos, será necessária uma força de 20 mil homens para derrotar o EI, que é constituído por uma aliança entre terroristas sunitas, oficiais sunitas que foram fiéis a Saddam e tribos sunitas.

Culturalmente estamos ligados
As ondas de choque serão tremendas. Na Europa, multiplicam-se as operações policiais contra redes e o mundo árabe parece ter-se fechado a qualquer evolução. Uma situação de autêntico choque de comboios?

“Só é possível exportar a democracia numa malha cultural que aceite a igualdade entre as pessoas. A resposta foi o regresso ao Islão puro e duro, o retrocesso em relação aos direitos das mulheres, aos direitos humanos”, analisa Ângelo Correia. E recorda: “Nalguns países árabes, as mulheres não podem conduzir, mas quem guiou o exército de Medina para Meca foi Aisha, a mulher de Maomé, que conduziu o exército no veículo que então existia, o camelo.”

O Presidente egípcio Abdul Fatah Khalil Al-Sisi afirmou que era necessário modernizar o Islão. “Formalmente, o Islão permite a evolução, mas é preciso que o processo seja conduzido pelos teólogos”, considera o cônsul da Jordânia em Lisboa. “O Islão é para todos os tempos, não está ultrapassado, o Islão é um código de vida que fala de Justiça, Igualdade, Direitos Humanos, que quer o bem-estar das sociedades, embora a meu ver alguns países islâmicos deixem muito a desejar quanto ao cumprimento dos princípios do Islão”, contrapõe o xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa e teólogo. “Acho que não podemos impor qualquer modelo, temos de saber se no Islão, sem trair a religião, pode haver evolução”, refere Boaventura Sousa Santos.

Para o xeque Munir, a urgência é outra: “Temos o desafio à nossa frente de explicar aos não-muçulmanos que o Islão não é radicalismo. O problema das comunidades no Ocidente foi terem marginalizado os emigrantes, o que graças a Deus não aconteceu em Portugal.” Na agenda do que está por fazer, este imã inscreve o combate às tendências de auto-guetização: “Cada mesquita ou lugar de culto tem de ser visível, transparente.”

Por isso, defende o acompanhamento por entidades religiosas dos países da origem dos emigrantes muçulmanos como forma de evitar o radicalismo. Propõe a inserção das mesquitas em actividades intercomunitárias. “O diálogo inter-religioso é fundamental”, destaca.

Portugal, com uma comunidade de 50 mil muçulmanos, na sua esmagadora maioria originária de Moçambique e Guiné-Bissau, não apresenta os problemas que outros países europeus. “Em Moçambique ou na Guiné compartíamos a mesma cultura, culturalmente já estamos ligados”.

Diferente é a expectativa do autarca Paulo Marques, com o pelouro das Relações Internacionais na Câmara de Aulnay-sous-Bois, localidade a norte de Paris, eleito nas listas da União por um Movimento Popular, a UMP de Nicolas Sarkozy. "Depois da passividade do Governo (socialista de François Hollande], haverá, provavelmente, um decréscimo da liberdade, com o desenvolvimento de medidas como a videovigilância”, admite.

Na sua vila de 83 mil habitantes, onde se situa o aeroporto internacional Charles de Gaulle, há uma grande comunidade de magrebinos e de originários de países da África central, como o Mali. Residem nas habitações que substituíram os bairros de lata onde viveram os portugueses até aos anos 70 do século passado. Será que se repete a integração?

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