Cavacos dos Natais passados

Para começar, a TAP estava despachada. Disso não restavam dúvidas. O governo decidira a privatização, escolhera o banco para a fazer, e lançara a requisição civil para impedir os empregados da companhia de fazerem greve. A lei que determinava o assunto estava redigida, aprovada e promulgada. Aníbal Cavaco Silva nem precisou de a assinar; deixou passar os quarenta dias que tinha para se pronunciar e o seu silêncio fez lei.

Para quem é, bacalhau basta.

Aníbal sabia-o. Poderia ser de outra forma? Não havia sentimentos a demonstrar. A temperatura do velho Palácio de Belém, no Inverno, era a mesma dentro e fora do espírito do seu inquilino. As obrigações do cargo estavam cumpridas; gravara a sua mensagem de Natal para os portugueses, com Maria ao lado. Tirou a gravata, dobrou o fato e pousou-o na cadeira, vestiu uma camisa de dormir e o seu barrete com borla, e entrou na cama sem botija de água quente.

O sono foi agitado. Pedro Passos Coelho, que ele conhecia desde rapazote, ligou-lhe (às nove da noite!) para o convidar a provar umas rabanadas lá em casa pelo Natal. “Achas que tens razões para luxos?” — disse Aníbal — “Isso está acima das nossas possibilidades.” Pedro murmurou qualquer coisa sobre a quadra. “Balelas!”, respondeu Aníbal, “mais uma palavra sobre este assunto e não te seguro como tenho feito”.

***

Nos sonhos, Aníbal não foi visitado pela memória de nenhum sócio, colega ou companheiro. Em sua opinião, não devia nada a ninguém e tudo o que tinha conseguira-o sozinho.

Em vez disso, apareceu-lhe uma imagem dele como jovem. Guiava um carro novo em direção à Figueira da Foz e nessa altura ainda gostava de eleições. Não as via como um momento de instabilidade. Via-as como um momento de as ganhar. Havia dinheiro para gastar, pontes a fazer, estradas — tudo de uma tia que vivia fora de fronteiras. Aníbal, mesmo dormindo, sorriu. Tinha ministros às ordens; as pessoas ouviam-no com paciência e não havia debates quinzenais no parlamento. Um político de oposição pediu ao menos um debate mensal. Aníbal respondeu: “À minha custa?! Safa!”. O tema morreu ali. Bons tempos.

De repente, uma janela de Belém bateu e despertou Aníbal. Quando voltou ao sono, o fantasma do Cavaco passado tinha desaparecido, e em vez disso apareceram-lhe três homens, todos eles estrangeiros, cada um com uma pasta na mão, tirando papéis lá de dentro. Eram a troika. Um mostrou-lhe um gráfico com a evolução da dívida; outro com os juros; o terceiro com um molho de folhas, o Tratado Orçamental. Aníbal deu um grito e Maria acordou.

Voltaram ao sono e veio o pior pesadelo. Era o fantasma do Natal futuro — o último Natal em Belém. Dali a um mês seria eleito um novo Presidente. Já havia um novo governo até. Gente estranha rondava os corredores. Aníbal teve um frémito: e se não o escutassem? Acordou com um nó na garganta até se aperceber que era apenas um sonho.

Quando finalmente amanheceu, na véspera de Natal, Aníbal prometeu ser menos duro com Pedro; afinal, o rapaz era quase da família e merecia que o segurasse mais uma vez. Decidiu que lhe apareceria essa noite em casa, de surpresa, com uma fatia de bolo-rei. O seu coração ria e isso era quanto lhe bastava.

(inspirado em Um Conto de Natal, de Charles Dickens)

 

 

Sugerir correcção
Ler 2 comentários