A urgência lúcida de Vasco Gato

Num momento em que havia concluído que não precisava da escrita na sua vida, Vasco gato viu-se sem dinheiro e com uma criança nos braços. Daí nasceu a urgência de dizer ao filho o mundo que o espera. Fera Oculta é uma espécie de carta de amor em que o amor pouco pode. Porque o mundo é o mundo.

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É estranho, o universo da escrita. Dezenas de milhares de anos depois de criarmos um aparentado de alfabeto que permitia registar os resultados das colheitas, chegámos a isto: na literatura há géneros perfeitamente definidos e quem quer que escreva tem de cumprir os requisitos dessa sub-linguagem: um primeiro romance não pode passar das 300 páginas, a novela tem de andar ali entre as 60 e as 100 páginas e de contos não conta a História.

A vantagem da poesia é que, como já toda a gente dá de barato que ninguém a compra ou lê, permite o aparecimento de objectos como Fera Oculta, o mais recente livro de poesia de Vasco Gato, cidadão de 38 anos que numa vida passada estudou Economia e Filosofia. “Mas não acabei nenhuma [licenciatura]”, diz-nos, enquanto almoça um prego e uma imperial, que a crise toca a todos – e está presente por todo o lado no seu pequeno livro.
Antigamente nem se chamava a isto livro, antes plaquete: no total, com capa e contra-capa, Fera Oculta tem 20 páginas; os poemas ocupam 13. Estão divididos em cinco secções e dentro destas há apenas uma linha de intervalo entre cada poema. É, no fundo, uma carta de um pai a um filho que aí virá, ou antes, um aviso do género “É isto que te espera e isto não é bonito”.

O que quer que o leitor encontre em Fera Oculta depende da sua relação com a poesia. Pelo que a assumida menoridade de Fera Oculta, um livro que, segundo o seu autor, “não ambiciona a nada excepto dizer o que diz”, pouco importa face aos rasgos de fria lucidez que o atravessam.
Num poema o narrador dirige-se ao filho: “Sei que haverás de te deslocar/timidamente/ por estas ruas e prédios (…) em que se decidem os bicho/ a que chamamos homens/ e que tão pobremente os têm habitado (…) à excepção de uma ou outra carne/ mais obstinada em escapar/ à bala comum”. Raras vezes um pai entreviu um fim tão banal para a sua cria.

Note-se o “bala comum” que, com o seu jogo fonético, soa a “vala comum” e atente-se, uns versos à frente, em como a paternidade é aqui esvaída daquele excesso de ilusão que leva os pais a julgarem estar perante um ser especial: sem um pingo de histrionismo, o narrador escancara as suas ânsias: “Perdoa a falta de graça/o tom melancólico a guerra/ mas é que vivo numa época/ que como muitas antes dela,/ repetiu os subsídios ao nojo/bateu o sangue em castelo/ para se levar ao forno da ambição/ deu uma sova às pequenas respirações”.

O “muitas antes dela” está ali para nos lembrar que não há nada que o poeta possa dizer que não saibamos já. Que não há nada que vivamos e que a criança vá viver que não tenha sido antes vivida. “Isto” (criança, vida, poema) não é especial.
Gato fala de um “país tão desabitado/que festejas/ cada desembarque como se te trouxessem/o oceano”, imagem precisa e tremenda do nosso actual Portugal. Mais à frente, noutra imagem particularmente bem conseguida, o poeta chama a Portugal “o território homeopático da extinção” e é admirável a exactidão dessa tão pouco poética palavra que é “homeopático”. A imagem cria em nós a ideia de um país que mata devagar, por cansaço. Não a de uma ditadura cruel e sanguinária, mas a de uma ditadura oculta, em que quem tem fome tem pudor em falar nisso e no fim nem se sabe se sucumbe à falta de alimento ou ao silêncio que se auto-impõe.

Mais incomum ainda que um pequeno livro de poemas dedicado ao filho em que o amor é, conscientemente, uma precária rede perante o mundo, é o facto de o livro acontecer por acaso. Antes de mais porque Gato não sente “mais a necessidade de escrever”, o que pode parecer estranho num livro que nasceu da “urgência de dizer”. Ainda assim, ele insiste: “Os meus livros anteriores, nem quero olhar para eles. Sei que preciso de literatura na minha vida, mas a verdade é que hoje em dia não sinto a necessidade de criar uma obra. Passo bem sem escrever. A música é mais importante, até: sei que estará sempre presente na minha vida, mesmo que eu nunca faça um disco”. Gato, note-se, tem um certo dom para a coisa, e em bom disposto toca o cancioneiro todo da folk de trás para a frente.

E no entanto, apesar de não precisar mais de escrever, foi exactamente isso que deu origem a Fera Oculta, que “começou a ser escrito para aí em Março, Abril [deste ano], durante o primeiro trimestre da gravidez”: a necessidade de pôr cá para fora.

“Nós [Gato e Inês, a mãe do seu filho] mudámos de casa meio ano antes, preparámo-nos e de repente tiraram-nos o tapete. Desde Setembro ou Outubro do ano passado que o trabalho começou a escassear. As notícias deixam-nos num estado de toxicidade, de saturação desta crise, de impossibilidade de virar a página e seguir em frente”, continua. Estava “sem trabalho, a acumular dívidas e de repente um filho”, diz, a boca a parar a meio do caminho em direcção ao prego. Há ali algo que o remói: “Um gajo fica em pânico”.

Não é que Gato desconheça a ausência de dinheiro: até se tornar tradutor, em 2007, fez de tudo, desde servir em bares a ser comissário de bordo. Opções de carreira, diz, não são com ele. Mas uma coisa é não ter cheta e outra é não ter cheta no bolso e um filho no braço. Dessa consciência de que precisava de dinheiro para tratar do filho e de, que de certo modo, nada poderá fazer para impedir que um dia a sua cria venha a estar na mesma situação sem cheta em que ele próprio estava, nasceu Fera Oculta.

Nesse sentido, o longo namoro do autor com a penúria é talvez a (digamos assim) mais-valia de Fera Oculta: há um pânico que o atravessa, ma o narrador nunca se deixa ocupar completamente por ele; antes pelo contrário, a sua auto-consciência, a sua racionalidade, levam-no a admitir que “isto” (de andar cá) foi “sempre assim”. Digamos que o parto de Fera Oculta pode ter sido movido a medo mas antes houve meses da mais fria lucidez.

“A gravidez é muito física para as mulheres. Para nós, durante meses, resta a questão: ‘O que é implica esta criança nesta altura, o que é que ela significa na ordem dos dias?’ Ficamos com a metafísica”. A metafísica não encontrou respostas, antes empilhou dúvidas que levaram Gato a “uma urgência em dizer”: “A verdade é que em vez de lhe dizer [a Rodrigo, o seu filho] que linda vida e pais magníficos o esperavam, o meu ímpeto era falar-lhe do mundo de merda, encostado às cordas, a que vem parar”.

Uma frase de Gato sumariza Fera Oculta: “Queria dizer-lhe coisas boas – mas não dá”. O que fica bem claro numa das sequências de versos mais duras da plaquete: “Gostaria no entanto de te receber/noutro lugar/ não neste boi tombado/ que dá pelo nome de vinte e um/ peso morto arrastado pelos cornos/ apenas para que não o devassem/ as moscas”.

O tom é quase sempre este: desprovido de grandezas, léxico simples, aqui e ali uma imagem que salta, resultado de Gato escrever “sem vigilância”: “Não tinha nenhuma pretensão, nenhum plano”. Talvez por isso, afiança, “a escrita tenha sido mais fluída do que aquilo a que [está] habituado”. A primeira versão “não terá demorado mais que uma ou duas semanas” a compor; as revisões ocuparam um par de meses.

E no entanto “não há assim tanto desespero”, nota. “Há um tom que diz: ‘Esta é a história do mundo, toda a gente tem de se virar. É injusto, é feio, mas é isto’”. Essa procura de equilíbrio permite que entre a amargura surja a beleza – por exemplo, num dos mais belos versos que a poesia portuguesa conheceu em anos recentes: “bem-vindo ao continente dos frágeis”. Se é certo que a poesia portuguesa sempre venceu pelo adorno, aqui há uma claridade e um desempoeiramento sem merdas que é de louvar.

A obra de Gato, note-se, sempre foi irregular, mas aqui a irregularidade funciona a seu favor: em cada poema há uma imagem que salta e que ilumina não apenas o que há de horroroso no nosso tempo, mas também a eterna questão da vinculação, que leva a que cada pai pense o que tem para oferecer a um filho: “leva apenas este braço (...) com toda a inexperiência do gesto/e que pela vida fora/ há-de ser solidário com o mapa/ da tua errância”, lemos no fim.

Quantos pais destinam, à partida, os filhos à errância? Quantos pais escrevem “Se algo tiveres absolutamente de fazer/que seja a travessia/ das cerradas cordilheiras interiores/ em que acabarás por tropeçar”? São estes momentos que fazem de Fera Oculta um livro especial: perante o medo e o desconhecido, o homem que fala não poupa o filho a um inevitável futuro, mas também não o carrega com a crueldade do mundo; não exclui do seu discurso alguma fé, algum pânico, alguma raiva, mas agarra-se à lucidez, à frieza de quem sabe que o mundo é o mundo e isto não vai lá com poesias nem quimeras.

“Nada disto é extraordinário”, diz Gato, poeta incomum, que não tem lugar em nenhum dos quintalinhos da literatura portuguesa, tipo tímido que fala sem tretas e tem um fraco pelo humor americano. “Nem a paternidade nem o que vivemos no nosso tempo. Vivemo-lo como extraordinário mas não é verdade: o jogo aleatório da vida faz com que tudo isto aconteça vez após vez. Quero acreditar que a História nos fará subir um degrau – e não quero que a segurança social me foda – mas estes altos e baixos são comuns e o teatro da vida é igual há séculos: há o canalha, o tipo que oferece o pão – e se calhar será sempre assim até ao fim”.

Esta consciência da sua pequenez no mundo é o líquido amniótico que pare Fera Oculta, livrinho “em que as grandes ideias estão lá no fundo, postas em pausa”. Isto é o que é: um mundinho de merda, um livrinho com momentos de rasgo e de uma comovente recusa em ceder à irracionalidade.

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