Pynchon por Thomas Anderson: verdade ou alucinação?

Paul Thomas Anderson apoderou-se de um livro de Thomas Pynchon e fez da Califórnia o cenário de uma sociedade em mudança parodiada num policial negro. Inherent Vice estreou-se no circuito comercial. Podia chamar-se 1970-2014, uma alegoria da América

Trailer oficial de Inherent Vice

A pergunta é inevitável: como se pode adaptar ao cinema um romance de Thomas Pynchon, um universo que congrega crítica social e política, boa dose de delírio e paranóia feita de fantasmas colectivos e dos medos mais íntimos num conjunto em que tristeza e estranheza convivem com gargalhadas de um humor apurado ou simplesmente da loucura?

Nunca ninguém adaptou Pynchon ao cinema. O autor de Arco-Íris da Gravidade (original de 1973) ou Mason & Dixon (1997) vive de uma linguagem mental, tem um pé na ficção científica ou na distopia e outro na realidade mais sórdida. Nele, o grande desafio é encontrar um sentido, um que seja, numa multiplicidade de hipóteses que leva muitos a desistirem de o seguir. Aos 77 anos, com nove romances publicados, quase todas obras extensas e muitas personagens, Thomas Pynchon autorizou que um livro seu fosse adaptado a filme e que o autor do argumento fosse Paul Thomas Anderson.

Boa parte dos espectadores que enchem a sala dois do Angelika, o multiplex na Houston Street que mais sessões dedica em Nova Iorque ao chamado "cinema independente", são fãs do escritor nova-iorquino ou do realizador da Califórnia, autor de Boogie Nights (Jogos de Prazer), Magnolia, Haverá Sangue ou The Master – O Mentor. Leitor de Pynchon, Anderson confessou recentemente numa entrevista ter sido também essa a sua grande questão de partida: como filmar um livro do escritor que desafiou as regras da escrita convencional e inventou um universo com uma linguagem cifrada, contaminado pela ideia de apocalipse, em que o tempo e a mente humana são tantas vezes desmontados de forma psicadélica à prova dos nervos mais resistentes. Depois de escolher que título de Pynchon e optar por aquele que é considerado o mais próximo do real e mais divertido de todo o universo pynchoniano, Anderson colocou à porta do seu escritório um “não perturbar” e copiou diálogos até encontrar um tom, chegando ao que considera ser um filme de entretenimento fiel ao estilo do escritor. Será?

Se é verdade que é a primeira vez que um livro do grande eremita das letras americanas é adaptado ao cinema, depois de ver o filme, surge a dúvida: mais alguém se atreverá? Inherent Vice é um policial negro com boa dose de humor e sátira, uma aventura excêntrica com acção, no final da geração hippie na Califórnia. Com argumento totalmente da sua autoria, Paul Thomas Anderson constrói uma paródia em que, como nos livros de Pynchon, o leitor/espectador anda perdido acerca do sentido da obra.

Mas se em Pynchon essa perdição, no seu lado errático e dissonante, faz parte do jogo, já em Pynchon segundo Paul Thomas Anderson as regras estão todas por descobrir, com uma certeza à partida: fala-se da América de 2014 mesmo quando o cenário é a Califórnia de 1970 e talvez esse seja o aspecto mais inquietante e duradouro, que persiste depois de duas horas e meia de filme de longos diálogos, planos que pretendem dar a ilusão de que é um filme de época, banda sonora a marcar o ritmo como é típico de Anderson, desta vez com destaque para as canções de Neil Young, e uma obsessão com o pormenor que tantas vezes desafia a atenção face a uma acção que se vai subdividindo para tocar todos os temas e subtemas que Pynchon e depois Anderson querem tocar. 

Publicado em 2009, um ano depois do colapso da bolsa em Nova Iorque, a data oficial para marcar o começo de uma crise que continua a gerar mais perguntas do que respostas, Inherent Vice é uma história policial meio rocambolesca situada noutro tempo de mudança, o que pôs fim à cultura hippie, também simbolicamente marcada com os assassínios do grupo de Charles Manson, de que Sharon Tate foi vítima em 1969.

O epicentro é a Califórnia e o início de uma sociedade que nasceu no oposto aos ideais dessa cultura do flower power. O culto do dinheiro, a ganância como grande sintoma, o medo do fracasso como o motor nunca assumido de uma sociedade que se reinventava tendo como sustentáculo os antigos pilares da desigualdade, do abuso da autoridade, do extremismo de ideais, do preconceito racial, de classe, de género. Que América seria então essa, a de um império de sucesso pessoal com bases num colectivo de alicerces tão frágeis?

Parecia ser a pergunta que Pynchon queria sublinhar como fulcral no fim da década de 60 e início da de 70, mas escrita com o conhecimento de alguém que sabe o que é a América no final dos primeiros anos do século XXI. O distanciamento temporal permitia a crítica e o sarcasmo construídos por Thomas Pynchon a partir de personagens caricaturais que inspiraram Paul Thomas Anderson na criação de um filme que, sem querer trair Pynchon e fazendo mesmo reverência ao escritor, tornam este Inherent Vice, o filme, um produto quase totalmente de Paul Thomas Anderson. É o que se sente perante o ecrã: Inherent Vice, título que imita o original literário até na grafia escolhida, com as mesmas cores da capa do livro, é um filme de Paul Thomas Anderson, uma paródia sobre a América actual, na sua frustração, perdição, gargalhada e também no falhanço.

 

1970-2014


Estreado em Outubro no Festival de Cinema de Nova Iorque, o filme entrou no circuito comercial no fim-de-semana de 13-14/12, durante dias de protestos contra o alegado abuso de autoridade policial e de uma justiça que, na prática, parece funcionar com pressupostos diferentes de acordo com a raça. É também o início de um fim-de-semana nas vésperas de Natal. Há confusão, sirenes, trânsito parado. A Broadway desce a ilha de Manhattan num coro organizado: “Hands in the air, please don’t shoot.” As ruas dos arredores estão cortadas.

Numa praça da Lafayette Avenue, paralela à Broadway, dezenas de carros de polícia esperam. Se for necessário, estão preparados para intervir. Os meios de comunicação falam em 12 mil pessoas a manifestarem-se. No ar, helicópteros vigiam um longo perímetro.

Na sala de cinema do número 18 da Houston Street, o barulho da linha de metro que passa por baixo corta o silêncio da primeira cena, um plano estático, o mar entre duas casas e uma voz feminina, tom blasé, excesso de familiaridade, a narradora de serviço e qualquer coisa como: “Se numa noite calma na praia a tua ex-namorada aparecer do nada com a história do seu actual namorado milionário e a sua mulher e o namorado dela a engendrar um enredo para o raptar e enviar para um manicómio, talvez seja melhor olhar para o outro lado.” 

O ouvinte da história é um detective privado pedrado, um dude com ares de Big Lebowsky, conhecido por "Doc Sportello", interpretado por Joaquin Phoenix, o actor que parece não falhar uma cena. Sabe-se que ele não irá olhar para o lado e decide seguir a pista da ex-namorada, Shasta Fay Hepworth (Katherine Waterston), ex-hippie agora com ares de aristocrata, que tal como o namorado milionário – enriquecido graças ao negócio do imobiliário – desaparece. 

Entre cigarros de erva e múltiplas conversas no seu telefone verde, Doc é o centro de um filme que Joaquin Phoenix leva às  costas com a sua interpretação. Overacting? Depende do que se quiser encontrar nesta obra, cuja estranheza ultrapassa a de uma simples adaptação. Anderson não é apenas o intérprete de Pynchon nesta versão do policial que marca o fim de um ciclo e o início de outro. E ser “apenas” intérprete não seria pouco.

Como se não bastasse a questão como ler e dar a ler Pynchon no cinema, ainda se junta a de o autor da adaptação ser alguém com uma marca também muito vincada. Haverá nele imagens capazes de transmitir o lado errático, poético, alucinante, de desconcerto ante o real, além das que a literatura consegue retirar de cada leitor particular?

Paul Thomas Anderson falou em entretenimento, mas o mistério por resolver num tradicional filme policial não é aqui linear nem central. O desaparecimento da ex-namorada e do seu amante é apenas um dos muitos enredos do tal enredo maior que é o da sátira social retirada de Pynchon. No rasto de Sasha, Doc revela a sua relação ambígua com Bigfoot Bjornsen (Josh Brolin), um polícia que é o seu oposto físico e moral. Penteado à escovinha, fatos de corte clássico, o tipo republicano que representa uma velha ordem que agora se reapresenta, assente nos tais valores de uma outra moral – a do sucesso monetário. Doc é o polícia sem grande vontade de o ser. Bigfoot o que todos os polícias gostariam de ser, se quisessem ser polícias nessa Califórnia em mutação, sempre disponível para quebrar os direitos cívicos conquistados há menos de uma década para restituir o que considerava os direitos americanos perdidos para a cultura hippie sem adivinhar que essa já estava também ultrapassada. Era a metáfora de uma América que se anunciava? A caricatura continua e o vilão pode ter tantas caras.

Isso é a verdade? Anda sempre Doc a interrogar-se e cada espectador com ele. Nesse tempo? Neste tempo? Continuamos. A indumentária, a banda sonora, as patilhas de Doc que podiam ser de outro tempo qualquer reenquadram o tempo. É 1970. O ano do nascimento de Paul Thomas Anderson. Podia ser 2014 quase em tudo. Será essa a tragédia ou a tristeza que atravessa o filme, a de 44 anos depois a paródia, ou a profundidade que se quer dar à paródia, a alegoria, ser insuportável para alguns espectadores que foram abandonado a sala na tarde de manifestação em Nova Iorque? Nem todos conseguem ou querem ler Pynchon. E este Anderson? Tudo parece um teste. Até à saída, nessa espécie de estreia comercial, com cada espectador convidado a manifestar-se, anónimo, sobre o que viu. O filme está "a votos” pelo público.

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