Ao delator desconhecido

Recapitulemos. Enquanto a situação orçamental de vários países europeus, incluindo o nosso, ia ficando tão má que acabou por forçá-los a pedirem resgates, o homem que presidia a esses resgates governava um país, o Luxemburgo, que fazia acordos secretos com multinacionais para que estas pudessem pagar um imposto irrisório por transações que tinham lugar nos nossos países. Nas últimas semanas foram revelados milhares de documentos, em duas fugas diferentes, que comprovam a existência deste esquema inteiramente legal e profundamente imoral que, por si só, nos revela muito do que está errado na União Europeia de agora.

Ah, mas a justiça não falha. Finalmente um juiz do Luxemburgo abriu um processo de investigação por roubo e violação de segredo comercial... contra o delator do caso. Ainda não tem nome conhecido este homem, se for de facto homem, que se pensa ser francês e ter trabalhado na PricewaterhouseCoopers, apenas uma das quatro grandes empresas de consultoria e auditoria do mundo especializadas neste tipo de serviços, e aquela de onde vinham os documentos que abriram esta nova fase do escândalo.

Entretanto, o ex-primeiro ministro do Luxemburgo, Jean-Claude Juncker, continua Presidente da Comissão Europeia, e os grandes grupos políticos europeus protegem-no tentando impedir a formação de uma comissão de inquérito no Parlamento Europeu para investigar este caso.

Isto pode mudar as coisas. Há anos que muita gente tenta demonstrar a centralidade dos esquemas de “planeamento fiscal agressivo” na economia e na política atual. Estudiosos e ativistas como Richard Murphy ou Naomi Fowler lutaram por divulgar os números que se crê serem os montantes ocultados todos os anos (cerca de um bilião de euros só na UE — um milhão de milhões) e descreveram os vários esquemas usados pelas empresas multinacionais para fugir aos impostos através da Áustria, da Holanda, da Irlanda e do Luxemburgo.

O assunto era crucial e conhecido, mas não tinha caras. E agora, graças à ação de um desconhecido e ao pânico que ela infundiu no Luxemburgo, pode passar a ter.

Confesso que estou ambivalente em relação a isto. Se for revelada a identidade do delator, o pobre coitado verá desencadeada contra si a raiva das multinacionais mais poderosas em todos os setores, além do sistema legal de um país que depende destes esquemas. O meu desejo é que ele esteja escondido e seguro.

Mas se a sua identidade for revelada, centenas de milhões de europeus terão a quem agradecer por ter exposto o roubo organizado dos nossos recursos, num momento em que nos dizem que teremos de perder as conquistas sociais e democráticas das últimas gerações “porque não há dinheiro”.

Mas há dinheiro, muito dinheiro, por aí. Mais do que suficiente para recuperar as nossas economias e manter o essencial do estado social. E esse dinheiro é nosso, usado em transações quotidianas nos nossos países, mas em que as multinacionais têm facilidade em declarar como se tivessem sido realizadas nos países onde pouquíssimo imposto se paga, ao abrigo de acordos especiais e secretos. A sociedade não ficou menos rica nem mais estúpida, e está perfeitamente capaz de se prover a si desde que não haja quem açambarque a maior parte dos recursos.

E por isso, caro delator, se de facto existes: merci, mon ami.

("Post-scriptum. Logo após o envio desta crónica, o jornal Libération revelou o nome do delator: Antoine Deltour, 28 anos. Voltarei ao tema com a publicação da sua primeira entrevista, durante o dia de hoje.")

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