A corda

O país seguiu ontem as audições parlamentares aos dois primos e banqueiros do Espírito Santo — uma espécie de maratona em estafeta na qual os dois corredores se detestam. À hora a que escrevo, José Maria Ricciardi ainda responde às perguntas dos deputados, depois das mais de dez horas de interrogatório a Ricardo Salgado. Para digerir tudo isto vamos precisar de um longo relatório, um par de romances, meia dúzia de livros de não-ficção e, provavelmente acima de tudo, uma ópera. No estilo ópera do malandro. A grande família, o poder, o dinheiro, as desavenças e o fiasco final. Um tenor fará de Ricardo Salgado, fleumático, composto, envolvendo o seu discurso numa cuidadosa teia verbal. Um barítono fará de José Maria Ricciardi, sanguíneo, intempestivo, dando erros de português enquanto as suas palavras se atropelam para sair.

E seria injusto não incluir o coro parlamentar. Polifónico, mas estudioso e bem ensaiado. Os deputados e deputadas da comissão parlamentar levaram a sério o seu trabalho, dignificaram a Assembleia da República e honraram-se a si mesmos. Ouvi taxistas atentos ao que transmitia a rádio, — “já estou faz horas nisto” —, soube de reformados que tiveram a televisão acesa todo o dia e fui seguindo jovens que foram comentando as audições nas redes sociais. Tenho a certeza que os deputados deixaram a todos eles, como a mim, a excelente impressão de que estávamos a ser representados nas nossas dúvidas e interrogações, melhor do que faríamos. Nestes tempos, é essencial registar isto, e esperar que a responsabilidade seja bem levada até ao fim do trabalho da comissão.

Ou seja, mais ou menos a impressão contrária com que ficarão todos os portugueses das práticas e da cultura no sistema bancário. Depois de cinco anos de crise, de todos os alçapões terem sido levantados, de tantos esqueletos serem encontrados nos armários, é notável como ainda nos pode deixar boquiabertos a total irresponsabilidade e suicidária negligência que grassava em pelo menos um banco de topo do sistema financeiro português. Esta cultura não nasce assim sozinha, nem por acaso; só pode ser o resultado de camadas e camadas de promiscuidade entre elites financeiras e destas com parte da elite política.

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Parece que Lenin tinha uma frase segundo a qual “os capitalistas nos hão de vender a corda com que os havemos de enforcar”. Parece que se enganou. Nós é que demos aos capitalistas a corda com que eles nos enforcaram. Ou, para ser mais rigoroso, essa corda foi dada em nosso nome: o nosso dinheiro, os nossos depósitos, os nossos impostos, as nossas garantias. Nos últimos anos, os bancos europeus tiveram os juros mais baixos e as maiores injeções de capital. Supostamente, em troca de uma supervisão mais severa, quiçá de uma certa moralização do sistema financeiro. E, no entanto, aqui estamos. Nem todos os bancos terão as caricatas rivalidades do BES, o novelo de dependências entre empresas familiares e a impensável relação destes com o regime angolano. Mas é impossível saber.

A magna questão continua a ser: e se em vez de darem tudo aos bancos os estados e a União Europeia se tivessem dedicado a recuperar a economia por baixo, ou seja, pelo emprego e pela procura, reservando para os bancos saneamento e redução de tamanho? A resposta é que todos estaríamos melhor, incluindo os bancos.

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