A história do professor que ficou colocado em 75 escolas depois de ter desistido do concurso

Fernando (nome fictício) afirma que o seu caso seria cómico se as consequências não fossem tão graves. Dos 3216 horários que o Ministério da Educação atribuiu esta sexta-feira, 75 ficaram para ele, que não vai aceitar qualquer um. Isso significa que, por causa de um erro, mais de 1000 crianças, no mínimo, ficarão pelo menos mais uns dias sem aulas.

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Em cada uma das escolas para as quais este professor foi chamado há pelo menos uma turma à espera de professor Rui Gaudêncio

Esta sexta-feira, Fernando, professor, ficou colocado simultaneamente em 75 escolas de Portugal Continental. À sua disposição, segundo outras tantas mensagens electrónicas que recebeu da Direcção-Geral da Administração Escolar (DGAE), tinha 53 horários para dar aulas ao 1.º ciclo e 22 como docente de Educação Especial. Uma dupla surpresa: pela fartura de lugares e por não ter direito a qualquer um – desistiu do concurso, a Bolsa de Contratação de Escola (BCE), no dia 16 de Setembro, e insistiu duas vezes com os serviços do Ministério da Educação e Ciência (MEC) para que anulassem todas as suas candidaturas.

A situação "seria cómica se não tivesse efeitos tão sérios", faz notar Fernando (nome fictício). Isto porque, ao ser colocado em 75 escolas, por erro dos serviços do MEC, bloqueou a entrada de outros tantos professores naqueles horários, a maior parte dos quais são anuais (até 31 de Agosto) e completos (com 25 horas, no caso do 1.º ciclo). Na próxima semana, as turmas daquelas 75 escolas continuarão sem professor do 1º ciclo e de Educação Especial. E o problema poderá manter-se, se o MEC continuar a ignorar os seus pedidos para ser retirado dos concursos.

A história começa com dois erros que o próprio MEC já assumiu. Na primeira Bolsa de Contratação de Escola (BCE), um concurso destinado às 304 escolas TEIP (Território Educativo de Intervenção Prioritária) e com autonomia, verificaram-se dois problemas que levaram Nuno Crato, o ministro da Educação,a pedir desculpa ao país e a decidir anular todas as colocações do primeiro concurso, cujos resultados foram conhecidos a 12 de Setembro.

Erros beneficiaram alguns
Primeiro erro da BCE: a lei determina que para a classificação final de cada candidato contam 50% da graduação profissional (apurada com base na nota de curso, nos anos de serviço e na avaliação) e 50% da avaliação curricular (calculada segundo critérios definidos pelas escolas, como a formação específica, a experiência, as actividades desenvolvidas, etc). Uma incorrecção na fórmula através da qual o MEC calculou a classificação final, contudo, fez com que a avaliação curricular ficasse sobrevalorizada e com que a ordenação dos professores fosse mal feita.

Na primeira BCE (antes de as incorrecções serem detectadas) aquele factor conjugou-se com o segundo erro para beneficiar Fernando. Isto porque, como reconheceu também o MEC, as questões a que os candidatos responderam através da plataforma electrónica da DGAE (para determinar o valor da avaliação curricular) não permitiam, nalguns casos, respostas verdadeiras.

Um exemplo, que foi precisamente o que beneficiou Fernando (permitindo-lhe ficar nos primeiros lugares das listas): este professor candidatou-se a três grupos de recrutamento para os quais tem habilitação - o relativo ao 1º ciclo, o de Educação Especial e o Educação Visual e Tecnológica (EVT). No entanto uma das perguntas colocadas pela DGAE era: “Qual o tempo de serviço, em dias, no grupo de recrutamento a que se candidata?” Fernando com zero dias de serviço nos dois primeiros grupos de recrutamento, respondeu com o número de dias em que leccionou EVT: mais de 3800.

Uma aplicação cega
Cega (para Fernando e para todos os candidatos que optaram pela resposta possível que lhes era mais favorável) a aplicação informática colocou aquele professor em quatro escolas, no dia 12 de Setembro. Fernando chegou a aceitar, na plataforma da DGAE, uma das colocações. Acontece que no mesmo dia chegara o resultado de um outro concurso, numa das Regiões Autónomas do país, onde dá aulas há anos. Por razões pessoais, optou por voltar para a ilha onde vivera.

Tomada a decisão, no dia 16 denunciou o contrato com a escola (do Algarve) em que ficara colocado, através de carta registada e de mensagem electrónica. De acordo com a lei, o simples facto de ter recusado a colocação, afastá-lo-ia de todos os concursos no continente durante este ano lectivo. Ainda assim, Fernando enviou um e-mail, também no dia 16, para o endereço electrónico geral da DGAE, a pedir que o retirassem dos dois concursos a que concorrera no continente: da BCE e da Contratação Inicial/Reserva de Recrutamento.

Já estava a dar aulas, numa das ilhas portuguesas, quando recebeu uma mensagem electrónica da DGAE – uma circular que o convidava a corrigir as respostas às perguntas que estavam mal formuladas. Se tivesse ido à plataforma electrónica disponibilizada pelo MEC, ter-lhe-ia sido possível clarificar que tinha zero dias de serviço no 1.º ciclo e em Educação Especial, e mais  3800  em EVT. Mas não o fez: “Nem liguei. Pensei que tinha sido engano”, explicou ao PÚBLICO.

Colocado em 15 escolas no dia 3...

No dia 26 de Setembro, a coisa mudou de figura. Fernando recebeu a notificação de que tinha ficado colocado numa escola através da Reserva de Recrutamento (um dos concursos de que pedira para ser retirado), mas que deveria esperar até dia 6 para aceitar ou não, já que, entretanto, poderia vir a ser colocado através da BCE (na qual, por lei, já nem poderia estar inscrito). Preocupado, telefonou para a DGAE, recebeu a informação de que deveria reenviar o texto do primeiro e-mail para outro endereço electrónico e assim fez.

Esqueceu o incidente. Mas no dia 3, ao verificar a caixa de correio, descobriu que o efeito do segundo pedido para que o retirassem dos concursos fora nulo. Quinze mensagens da DGAE indicavam que ficara colocado em nada menos do que 15 escolas, através da BCE. Como já tinha notificado a DGAE (e desta vez, supostamente, através do endereço electrónico correcto) foi à plataforma e assinalou “não aceitar” nas 15 ofertas de horários.

Todos aqueles actos constam da sua página pessoal naquela direcção-geral: três colocações anuladas (pelo MEC, que anulou todas as colocações da BCE1 devido aos erros), uma denunciada pelo candidato (relativa à escola do Algarve, que recusou depois de decidir voltar ao local onde dava aulas) e 15 assinaladas como “não aceites” no dia 3 de Outubro.

...e em 75 esta sexta-feira

Chega, por fim, a manhã desta sexta-feira. Atónito, Fernando verifica que viu a caixa de correio foi invadida, desta vez, por 75 mensagens electrónicas. A DGAE notificou-o, através dela, que estava colocado em outras tantas escolas, para dar aulas ao 1.º ciclo (em 53) e de Educação Especial (em 22). Deverá apresentar-se numa delas, tal como os restantes professores colocados esta sexta-feira, até à próxima terça. Se não o fizer, os horários ficam vagos e são chamados outros professores da lista.

O impacto do erro é grande. Através da BCE foram disponibilizados esta sexta-feira 3216 horários. Só Fernando, que não vai aceitar qualquer um, ficou com 75.

Fazendo as contas por baixo, em cada uma das escolas para as quais este professor foi chamado há pelo menos uma turma à espera de professor (já que a maior parte é do 1º ciclo). Mesmo calculando que cada uma tem apenas 21 alunos (algo invulgar) só com este erro do MEC estarão prejudicadas 75 turmas e 1575 crianças. Na terça-feira, as direcções das escolas verificarão que nenhum professor foi colocado. Só depois serão chamados os seguintes candidatos da lista, que voltam a ter um prazo de dois dias úteis para se apresentarem.

Fernando explicou que decidiu contactar o presidente da Associação Nacional dos Professores Contratados (ANVPC) e contar-lhe este caso por o considerar “representativo do caos provocado pelos mecanismos de colocação de professores nas escolas”. Pediu o anonimato nos contactos com a comunicação social, diz, para não ver o seu nome usado como “caricatura desta confusão”. Uma decisão que terá sido sensata. Minutos depois de a RTP1 denunciar a existência de um professor com 75 colocações, nas redes sociais já havia colegas que, de forma irónica, diziam querer pedir-lhe um autógrafo.

MEC: "Não se trata de um erro"

Num comentário a este caso, pedido pelo PÚBLICO este sábado, o MEC recorda que a BCE "é um conjunto de concursos ao nível de cada escola e dependentes dos critérios de cada uma" e que  "os candidatos melhor classificados podem ser escolhidos como os preferidos por várias escolas ao mesmo tempo". "Quanto à desistência, o docente deveria tê-lo feito na aplicação concebida em formato eletrónico para o efeito (e não por email) conforme informação constante da circular de 12 de setembro", refere, através do gabinete de imprensa. 

O PÚBLICO não conseguiu confirmar se, para além de ter enviado as duas mensagens electrónicas, Fernando desistou da BCE na aplicação electrónica . Algo de irrelevante, neste caso, segundo o MEC, apesar de na referida circular estar expresso que "a desistência da bolsa de contratação de escola é definitiva, não existindo possibilidade de desistência temporária". O ministério considera que esta é uma situação excepcional. "De qualquer modo, e uma vez que a BCE foi corrigida [na sequência dos erros detectados entretanto], este docente teria sempre de ser  chamado de novo a concurso uma vez que poderia surgir novo lugar da sua preferência a que tivesse direito", defende. E conclui: "Não se trata pois de um erro, trata-se sim de um procedimento legalmente cumprido"

 

Notícia alterada às 2h00 de dia 12: Substituídos os dois últimos parágrafos (onde estavam as explicações do MEC, referentes a questões colocadas na sexta-feira pelo PÚBLICO, sobre o problema, em geral, das colocações de um mesmo professor em várias escolas). Passaram a constar os comentários do ministério relativos ao caso concreto do docente colocado em 75 escolas.

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