Os relicários vivos de Raul Brandão

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Sara Carinhas é Candidinha na peça em cena no Teatro D. Maria II, em Lisboa Filipe Ferreira

A tentação é grande para analisar uma montagem de A Farsa tendo como referência a vida e obra de Raul Brandão ou categorias da história da arte como o expressionismo, o teatro pós-dramático, etc.

Com duas versões do mesmo texto em cena, a tentação é ainda maior: pode até comparar-se uma com outra, e em relação ao original. Só que tratar espectáculos de teatro como cópias de um texto devia ser pecado capital. Não haverá antes maneira de pensar na ressonância cultural destes espectáculos – sem reduzir a ideia de cultura ao conjunto das artes? E não será possível que um espectáculo se constitua segundo os próprios termos, como uma experiência única? A arte é um assunto demasiado sério para ser deixado aos artistas. Tentemos entrar nas obras, ou, melhor dizendo, nestas duas experiências, pela porta, e não pela janela.  

Ambos os espectáculos são magnificamente servidos por duas actrizes fabulosas, Maria do Céu Ribeiro no Porto e Sara Carinhas em Lisboa, fortes e vulneráveis ao mesmo tempo, que se entregam completamente ao rol de personagens que encarnam, sem perder nunca um ponto de vista pessoal. O olhar da encenação, oculto por trás da composição de luz, som, cenário e movimento, também se pressente no olhar das actrizes. A Candidinha de Maria do Céu Ribeiro traz a respiração de uma enorme galeria de personagens bem para perto do nosso pescoço. A Candidinha de Sara Carinhas e de Luís Castro faz isso também e ainda nos leva pela mão para dentro de uma casa-museu imaginária, feita de objectos perdidos e achados que nos ligam a outros tempos e espaços.

As imagens evocativas criadas pela figura das intérpretes aguçam a nossa curiosidade sobre o universo retratado por Raul Brandão. Mais do que isso, fazem pensar nos segredos do próprio retrato. Qual será a origem recôndita das frases maravilhosas do texto original, dito por elas e, no caso de A Farsa de Lisboa, também pela voz gravada de Luís Castro? Ao tentar reencontrar neste retrato algo que exista para lá dele, isto é, as fontes da obra original, imaginamos o mundo real que deu origem a este texto. Esse mundo está agora em relação directa com estes espectáculos, através de formas não verbais: por exemplo, os vestidos de escala descomunal pendurados na sala preta da Mala Voadora no Porto prolongam a nossa pequenez perante o mundo; as miniaturas do gabinete de curiosidades reanimadas pela actriz na Sala Estúdio do Dona Maria II aliciam-nos como guloseimas na vitrine da cultura material portuguesa. Ambos os espectáculos são versões sonhadas do nosso país, entre o pesadelo e o mito, que do outro lado do século nos chegam para dizer que ainda somos feitos da mesma matéria negra.

Um espectáculo de teatro é uma analogia ou miniatura do real tão mais perfeita quanto consiga significar o mundo inteiro, seja com muito, seja com muito pouco. A encenação de Luís Castro, assente numa metodologia própria que tem vindo a ser apurada, a perfinst [performance e instalação], e num trabalho aturado de coleccionador do real, revela-se mais ampla que a outra, sendo capaz de acondicionar a obra e o mundo lá fora de forma mais abrangente. A produção das Boas parece mais incompleta, como as capelas do Mosteiro da Batalha. Quer dizer, podia durar mais, para chegar a um qualquer outro lugar que não se sabe bem qual seja, mas se pressente. Estas duas Farsas levam o espectador em viagem de regresso a um lugar desconhecido, e por isso se espera que continuem em cena por mais tempo, em mais lugares.

 

 

 

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