O “caso” Donna Tartt

Chamam-lhe a Dickens do século XXI. No final de 2013 publicou O Pintassilgo e dividiu a chamada crítica de referência. Livro infantil para adultos ou sinfonia de prodigiosa imaginação, está traduzido em 20 idiomas e a suscitar um debate sobre o gosto literário.

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No princípio não há uma ideia, mas uma imagem, quase sempre um desenho. No caso de Donna Tartt, a escritora natural do Mississippi, onde nasceu em Dezembro de 1963, o romance começa por ser uma montagem de desenhos, frases, recortes de excertos de blocos de notas onde o texto vai crescendo à mão, a caneta azul e vermelha, até ganhar corpo.

É um processo longo. Leva-lhe cerca de uma década a compor cada livro. “Já tentei ser mais rápida, mas não funciona. Não retiro qualquer prazer da escrita e se o escritor não tiver prazer não o pode passar ao leitor”, tem dito Tartt sobre a sua escrita lenta. Em 32 anos de escrita publicou três romances. O último, O Pintassilgo, é um caso. Lançado nos Estados Unidos no Outono de 2013, há cerca de um ano, já vendeu mais de um milhão e meio de cópias e venceu o Pulitzer para ficção em Abril deste ano, dividindo a crítica em língua inglesa: os que o consideram uma sinfonia extasiante, como o escritor Stephen King nas páginas do The New York Times Book Review, e quem, como o crítico James Wood, o tenha referido como um livro infantil para adultos no texto que assinou na The New Yorker. Também já este ano, foi ainda notícia nos principais jornais de língua inglesa por ter “falhado” a longlist do Booker Prize (o vencedor será conhecido no dia 14 de Outubro) e está na génese de mais uma discussão sobre o futuro da literatura: o que é um bom romance e quem define essa qualidade.

A grande comparação é com Charles Dickens. Nas poucas entrevistas que tem dado, a autora fala de Oliver Twist como o primeiro livro que leu de um escritor que apresenta como grande referência pela capacidade de envolver o leitor com uma geografia e uma personagem, dando-lhe a ilusão de uma voz íntima, da partilha de sentimentos como a alegria ou a tristeza. “O livro vive dentro da minha cabeça; ia para a escola a perguntar-me como estaria Oliver”, contou ao The Independent durante a promoção de O Pintassilgo, referindo-se a um tempo em que devorava livros e que foi o seu grande formador.

Muito bem lida
Natural de uma pequena cidade do Mississippi onde cresceu numa família de amantes de livros, Donna trabalhou numa biblioteca e quem a conhece garante que é “muito bem lida”. Lia tudo o que tinha à mão, sobretudo os clássicos, e divida esse interesse com as artes plásticas. Um curso de contos, aos 18 anos, chamou a atenção dos formadores para o que consideraram ser “um génio literário”. Em 1982 chegava à Costa Leste, à Universidade Bennington, na Nova Inglaterra, para estudar literatura clássica. Teve como colegas e amigos Jonathan Lethem (n. 1964, autor de Tu Ainda não Gostas de mim, que também se envolveu numa contenda verbal com Wood depois de o crítico o ter considerado uma desilusão) e Bret Easton Ellis (n. 1964, autor de sucessos como O Psicopata Americano ou Menos que Zero), dois dos nomes mais falados da literatura americana. Um e como o outro estiveram envolvidos no lançamento literário de Donna Tartt, em 1992. Ellis apresentara-a à sua editora e nesse ano publicou A História Secreta (D. Quixote, 1995). O livro, um mistério com um crime em mais de 700 páginas, chegou à categoria de “notável” em muitos suplementos literários, vendeu mais de cinco milhões de exemplares e foi traduzido em 23 idiomas. A autora tornou-se desde então alvo de uma curiosidade que, passados 22 anos, continua a alimentar.

Quem era aquela rapariga de 21 anos que então comparavam na escrita (caso do New York Times) como a combinação improvável de autores como Eurípedes, Dostoievsky, Edith Wharton ou o companheiro Easton Ellis? Tinha escrito um thriller com notas de erudição de que toda a gente falava e era lido de forma voraz; aparecia vestida com roupas masculinas compradas na Gap Kids ou com fatos de alfaiate, à medida (casaco, calça, camisa e uma gravata a condizer com as meias, sapatos rasos) e um rosto extremamente feminino, olhos verdes, cabelo curto, escuro. Quando fala, o sotaque do sul aparece vincado, e o tom de voz contraria a frieza que a imagem sugere. Tudo a alimentar o culto de uma persona que a dramaturga e jornalista do Guardian, Katharine Viner, resumia de forma eficaz em 2002, ano em que Tartt reaparecia depois de dez anos de ausência, com o segundo romance, O Pequeno Amigo (D. Quixote, 2006). Viner enumerava qualidades que faziam um singular perfeito para criar um mito actual: nome “glamoroso”, tamanho “de bolso”, o atendedor de chamadas com T. S. Elliot a ler, e dona de afirmações como “a minha vida é como a de Cândido” ou “tenho o mesmo tamanho que Lolita”, precisando: 41 quilos e 1,52 de altura. Isto, a juntar a uma imagem que sugere um tempo anterior fizeram de Tartt um caso a seguir.

Uma construção?
Cada um dos seus três romances levaram-lhe cerca de uma década a escrever. Nesses períodos, não participa em festivais literários, não vai a feiras de livros, não dá aulas em universidades, não frequenta o meio onde se movem os nomes mais sonantes das artes e letras do seu país. Vive sozinha numa quinta na Virginia e passa temporadas em Manhattan. O mistério Tartt foi enriquecendo com muitas “verdades” a circular acerca da escritora que agora tinha outra característica a alimentar o carisma: a reclusão. “Eu não sou uma reclusa ou eremita. Simplesmente, não frequento eventos literários e quando estou a escrever tento não marcar nada. Não gosto de olhar para o relógio a ver se já são seis da tarde para ter de me vestir para jantar”, disse numa entrevista de promoção a O Pintassilgo. E em cada aparição ou frase ou emoção volta a interrogação. Até que ponto Tartt é também uma construção literária.

Ao contrário do segundo romance que teve uma vida discreta depois do enorme ruido do primeiro, esta terceira obra recuperou o “mito Tartt” de forma ainda mais intensa. “Como demoro muito tempo entre cada livro, cada vez que apareço encontro um mundo diferente”, referia-se em comentário às exigências de gestão de imagem que actualmente se pedem a escritores, quase todos com páginas de facebook e contas de twitter, calendários carregados de eventos, aparições em programas de prime-time na televisão. Não cede, continua a escrever à mão em blocos que transporta para todo o lado e diz que usa a Internet apenas para pequenas consultas, como endereços de restaurantes ou, no caso deste O Pintassilgo para consulta o Google Earth, um auxiliar para construir melhor ambientes das cidades onde a acção decorre: Nova Iorque, Las Vegas e Amesterdão. Ela prefere sentar-se no edifício da Quinta Avenida com a 42, em Manhattan, a sede da New York Public Library, entre volumes de livros, mas diz que consegue escrever em qualquer lugar. Cafés, transportes públicos, jardins, aviões. Basta um bloco e caneta.

Mas por vezes uma parede dá jeito. A formação em artes plásticas e o gosto pelo desenho associam-se à escrita. Transfere o que se passa nos blocos para uma escala maior e traça mapas, figuras, setas e palavras, construindo desta forma a intriga e as personagens de romances sempre longos. O segundo foi o menos volumoso, 555 páginas na edição original. O último chega agora à edição portuguesa com 896 páginas e uma capa a anunciar o quadro que lhe deu origem: O Pintassilgo, de 1654, da autoria do pintor flamengo, mestre de Vermeer, Carel Fabritius que morreu vítima de uma explosão em Delft (cidade perto de Haia, Holanda) pouco tempo depois de pintar o quadro, tinha 32 anos. 

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O atendedor de chamadas com T. S. Elliot a ler, e dona de afirmações como “a minha vida é como a de Cândido” ou “tenho o mesmo tamanho que Lolita”, precisando: 41 quilos e 1,52 de altura RUNE HELLESTAD/CORBIS

A imagem de O Pintassilgo foi a inspiradora mas não foi a decisiva. Tartt conta que o motivo para este livro ser como é foi a imagem que lhe chegou da destruição dos Budas de Bamiyan (património da Humanidade) pelos talibãs, em Março de 2001, meses antes dos atentados no World Trade Center, em Setembro desse ano. Falar do terrorismo e de obras de arte desaparecidas, por tráfico ou destruição, era uma das propostas para este livro que começou a definir-se muito depois das primeiras frases terem sido escritas num bloco de notas, há vinte anos, quando a escritora andava em digressão para promover A História Secreta. “O que escrevi nessa altura sobre Amesterdão acabou por manter-se”, contou numa conversa em Londres com a jornalista da BBC Kirty Wark onde comenta ainda o facto, assinalado por alguns críticos, de ser uma mulher que escolhe protagonistas masculinos (é assim no primeiro e no terceiro romance) dando-lhes voz. É um eu masculino na ficção. Nada de estranho, sublinha. A ficção é isso, permite viver vidas impossíveis.  

A corrente no pé
Como os anteriores, é um livro de mistério que parte de um acidente mais ou menos obscuro. Em A História Secreta há uma morte entre o grupo de estudantes de clássicos de uma universidade norte-americana (um pouco de autobiografia); em O Pequeno Amigo, Tartt volta às suas raízes sulistas para contar a angústia de uma rapariga às voltas com uma morte inexplicável.

O Pintassilgo centra-se na figura de Theodore (Theo) Decker que encontramos em Amesterdão em circunstâncias desesperadas e começa a contar a sua vida em retrospectiva a partir do episódio transformador. Na manhã em que seguia para a escola com a mãe, chamada a uma reunião com o director, a chuva levou-os a uma paragem no Metropolitan Museum. Estavam no interior quando aconteceu uma explosão reivindicada por um grupo terrorista que destruiu parte do edifício e matou a mãe de Theo. Entre os escombros estava Welton (Welty) Blackwell, um velho que antes de morrer lhe pede, numa conversa que pretende ser cheia de simbolismo e determinante no enredo, para “salvar” um quadro. Era O Pintassilgo, de Fabritius, não mais (outro acaso construído) do que a pintura preferida da mãe, uma mulher bonita e dinâmica com uma vida complicada por um marido bêbado que a abandonou sem deixar saudades. Theo, então com 13 anos, levou o pequeno quadro com ele e passou a ser em simultâneo a imagem da sua culpa e o seu elo à mãe com quem tivera uma relação muito próxima.

“A morte dela era o marco divisório: Antes e Depois”, ouve-se Theo nas primeiras páginas de um livro que sugere contágios com Dickens, como já foi referido, mas também com alguns romances góticos como O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, ou mesmo os chamados novos realistas norte-americanos, como Jonathan Franzen, na reprodução do quotidiano da América. Mistério, moral, sátira social, e a intensão de colocar grandes questões como o papel do amor e da realização pessoal. Sobretudo isto, como tem referido a escritora num discurso onde entra muitas vezes a palavra “salvação”’, por exemplo, quando diz que o que na vida nos salva é ou o amor ou o trabalho.

Theo, adulto, olha para esse momento decisivo. “As coisas teriam corrido melhor se ela não tivesse morrido. A verdade é que morreu quando era criança; e, embora tudo o que me aconteceu desde então seja totalmente culpa minha, mesmo assim quando a perdi, perdi também de vista todos os marcos que poderiam ter-me conduzido a um lugar mais feliz, a uma vida povoada ou mais animada.”

Órfão, Theo vai viver temporariamente com a família de um amigo, Andy, o patinho feio de uma casa que é o estereótipo da Park Avenue bonita, culta elegante e abastada, onde (cliché) o que parece quase nunca é ou se é não é como se mostra. Até ao dia em que o pai volta para o resgatar, acompanhado de uma namorada vistosa. Leva-o para Las Vegas onde começa uma vida sem regras com Boris, um filho de imigrante que já viveu em meio mundo, rapaz tão bondoso quanto desregrado. A descrição do vórtice de droga e álcool em que entra contrasta com a vida anterior de bom aluno em ambiente cosmopolita. Mas em Park Avenue ou num bairro novo de ricos de passagem por Las Vegas, a tristeza faz parte de um carácter solitário de Theo, que encontra algum conforto na imagem de James “Hobie” Hobart, o companheiro e sócio de Welty na casa de antiguidades do Village, a Hobert and Blackwell. Pouco depois do acidente, Theo tocou à campainha, conforme lhe pedira Welty, e encontrou Hobie a quem entregou o anel de Welty, mas nada lhe disse sobre o quadro. Ele será uma figura paternal. Com ele, num regresso a Nova Iorque dirigido por mais um acaso trágico, Theo tem acesso ao mundo da arte e, com isso, ao submundo de falsificações e tráfico.

O livro é rico em detalhes. A escrita de Tartt adjectiva, cria metáforas, traça um rumo entre o mágico e o existencial em que o quadro é guia criativo e espiritual de um rapaz que vais buscar características de Oliver Twist ou Pip, herói de Grandes Esperanças. Dickens sugere-se e procura-se em Tartt, mas falta a velocidade descritiva e a emoção só alcançada a momentos. O peso do quadro Theo raramente é sentido pelo leitor com a angústia pretendida. O quadro é o mote, o que o faz continuar um destino. Ainda que muitas vezes ausente do desenrolar da acção, a presença está lá e quer ser sublinhada. “Quem sabe porque é que Fabritius pintou o pintassilgo? Uma minúscula obra-prima isolada, única no seu género? Ele era jovem, celebrado. Tinha patronos importantes (.) Porquê este assunto? Um pássaro de estimação solitário? Que não era de modo nenhum característico da sua época, em que os animais figuravam principalmente mortos, troféus sumptuosos, lebres moles e peixes e aves, amontoados em pilhas altas e destinados à mesa? Porque é que me parece tão significativo que a parede esteja nua - sem tapeçaria ou chifres de caça, sem decoração cénica - e que ele tenha tido o cuidado de escrever o seu nome e o ano com tal destaque, já que não podia propriamente saber (ou será que sim? Que 1654, o ano em que pintou o quadro, seria também o ano da sua morte. Há no quadro, de alguma forma, um estremecimento de premonição, como talvez ele tivesse um pressentimento de que esta minúscula peça misteriosa seria uma das poucas a sobreviver-lhe.”

As inquietações e interrogações de Theo, jovem ou já adulto, sobre a pintura que viu pela primeira vez com a mãe são as do livro. E estão sempre bem justificadas, numa enorme atenção a detalhes, em busca de um preocupação de não deixar pontas soltas. Tartt é de uma enorme eficácia no modo como constrói um livro. A corrente que amarra o pintassilgo ao poleiro é que o agarra a Theo. Demasiado óbvio? Fácil? O Pintassilgo é um excelente entretenimento. Mas é isso. Quando quer ser mais profundo fica aquém. Wood talvez tenha sido cruel quando escreveu que ao contrário da sua autora, que ficou mais velha, a escrita de Tartt não amadureceu. Chamou ao romance um “bebé virtual”, com “o tom, linguagem e história de um livro infantil cujo sucesso simbolizava a infantilização do leitor adulto. Francine Prose, escritora e crítica literária, considerou-o menor e não vê onde está Dickens. Mas O Pintassilgo chega a Portugal carregado de louvores. O júri do Pulitzer considerou-o tocante, está em várias listas como um dos dez melhores livros de 2013. Em Julho deste ano a Vanity Fair dedicava-lhe um artigo a partir do qual colocava questões sobre o que se espera da literatura, o que faz um sucesso, o que é um bom romance. Quem souber a resposta tem o ovo de Colombo. Porquê tudo isto a partir de Donna Tartt? Porque ela dividiu a crítica respeitada? O coro tem várias vozes. E há sempre outro que canta ao mesmo tempo, falando do extraordinário mundo imaginário de Tartt.

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