Barquinho veio à deriva dos EUA até à Torreira e agora está a tentar voltar para casa

Resistiu a provações. Uniu muita gente dos dois lados do Atlântico. Permitiu que alunos aprendessem mais sobre os oceanos e os sítios por onde tem passado. Despertou a generosidade de quem o foi encontrando. E agora está a ser útil à ciência e até tem algo muito português a bordo. É a aventura de um minibarco não tripulado que tem viajado à deriva.

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O regresso do barco Charger ao mar, no final de Maio, depois da sua visita a Portugal EMEPC
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O barco a ser pintado pelos alunos de uma escola norte-americana DR
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A professora Barbara Nidzgorski, da escola norte-americana que acompanha o barco DR
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O barco como chegou a Portugal DR
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A equipa do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, que cuidou do barco DR
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O barco, o galo de Barcelos e a equipa da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental, que lançou o Charger no mar DR

Foi pintado pelos alunos de uma escola de Deep River, uma cidadezinha norte-americana perto da foz do rio Connecticut, com cerca de 4500 habitantes. Há dois anos, começou por ser deixado à sua sorte, a norte das ilhas Baamas. À deriva, empurrado só pelo vento e pelas correntes, regressou a terra, mas voltou a ser largado no mar, enfrentou dois furacões, atravessou o Atlântico – e, após outras aventuras, deu à costa portuguesa a 29 de Janeiro deste ano, mais exactamente à praia da vila da Torreira, no concelho da Murtosa.

Quis o acaso que esta mensagem oriunda do lado de lá do Atlântico em forma de barco, mais pequeno do que um adulto (tem 1,4 metros de comprimento), viesse cruzar-se no caminho de Vanessa Rodrigues, quando ela passeava com o namorado na praia da Torreira. “Estava quase todo enterrado na areia, tinha só um bocado do casco a ver-se”, conta Vanessa Rodrigues, de 21 anos, auxiliar numa colónia de férias naquela vila.

“Foi na altura em que houve muitas tempestades. Como saem do mar muitas coisas com o mau tempo, tínhamos ido de moto-quatro ver as dunas. E vimos o barco metido lá. Estava longe da água e da área de residências. Aquela não é uma zona balnear.”

Colado no convés, trazia um pequeno texto em inglês. “Dizia que tinha vindo de uma escola, e quem o encontrasse para contactar a mesma entidade”, lembra Vanessa Rodrigues.

Trazia ainda os contactos da Escola Preparatória John Winthrop, em Deep River e do site do Educational Passages, um programa educativo sobre ciências do mar destinado às escolas nos Estados Unidos. Esta ideia partiu de Richard Baldwin, um antigo navegador solitário norte-americano de 67 anos que, quando decidiu deixar-se dessas navegações, perguntou-se o que podia fazer continuar a divertir-se: “Não levei muito tempo a perceber que podia instalar unidades GPS em pequenos barcos não tripulados e segui-los pelos oceanos no conforto e na segurança da minha sala-de-estar”, conta-nos.

Lançou-se ao projecto em 2006, na garagem da sua casa: “Comecei a fazer pequenos barcos que se endireitavam e navegavam sozinhos durante meses e meses, sem ajuda de alguém.” Mas como não era fácil, pediu a arquitectos navais que desenhassem o modelo dos barcos, que hoje são construídos numa escola de ensino profissional no Maine, Estados Unidos.

Em 2008, o programa passou a envolver escolas, que pagam até 1500 dólares (1100 euros) por cada barco, incluindo os equipamentos e o lançamento no meio do mar: “É um óptimo programa para as escolas, pois envolve leitura de mapas, geografia, oceanografia, ciências da Terra e relações internacionais”, diz Richard Baldwin. “Até agora, já lançámos mais de 40 barcos e as travessias transatlânticas estão a tornar-se uma rotina.”

Vanessa Rodrigues e o namorado levaram o seu achado para casa. Ela foi ao site do Educational Passages. Aí, é possível ver com o Google Maps grande parte do percurso do barco, graças a um transmissor via satélite a bordo que envia, duas vezes por dia, a sua posição geográfica obtida por receptores GPS. “Dizia quando tinha saído da escola, quando o tinham posto no mar… No ´site’ até aparecia a fotografia aqui de casa a dizer que o barco estava aqui…”

No mesmo dia em que o encontrou (6 de Fevereiro), refere Vanessa Rodrigues, ela enviou um email a informar a escola norte-americana que o tinha consigo. “Responderam-me uns dois dias depois.”

Nos Estados Unidos, já sabiam as coordenadas geográficas do barquinho, assim que o transmissor via satélite comunicou que tinha estacionado na praia da Torreira. Nos dias decorridos entre a chegada à praia e ter sido encontrado, os seus “padrinhos” norte-americanos tentaram encontrar alguém que o fosse procurar. E voltasse depois a pôr na água, como é o objectivo do projecto.

Surpreendentemente, o mundo pode ser pequeno e dar-se a coincidência de haver alguém que conhece alguém que conhece alguém..., como aconteceu justamente nesta história. A professora que orientou os alunos na pintura do minibarco, Barbara Nidzgorski, falou da chegada dele a Portugal a um investigador espanhol seu conhecido, Alfredo Aretxabaleta, que por sua vez divulgou isso no Facebook. E o que escreveu foi por sua vez lido por dois amigos, antigos colegas seus no curso de Ciências do Mar nas ilhas Canárias, os espanhóis Francisco Campuzano e Hilda de Pablo.

Acontece que os dois amigos de Alfredo Aretxabaleta trabalham em Lisboa, como investigadores no Centro de Ambiente e Tecnologias Marinhas (Maretec) do Instituto Superior Técnico (IST). Claro que se oferecem logo para ajudar.

Este círculo fechou-se quando Barbara Nidzgorski deu os contactos de Vanessa Rodrigues a Hilda de Pablo, para que fosse buscar o barquinho.

Aventuras anteriores
O Charger (que era um cavalo de batalha usado antigamente e é a mascote da escola) deixava para trás uma vida de aventuras. Os alunos da escola de Deep River, que o tinham recebido todo branco, pintaram-no de amarelo, azul e verde. Acrescentaram-lhe pegadas de dinossauro e, segundo a descrição no Educational Passages, no casco em fibra de vidro desenharam “uma paisagem do rio Connecticut que leva até ao oceano, às baleias e às aves marinhas”. “Queríamos que os alunos aprendessem mais sobre os oceanos e soubessem até onde é que as correntes e marés levariam o nosso barco”, diz Barbara Nidzgorski.

Outra instituição, neste caso a Academia Marítima do Maine, largou-o pela primeira vez a norte das Baamas, em Maio de 2012. Teimoso, voltou pouco depois a terra, indo parar a Myrtle Beach, uma cidade turística, conhecida pelas suas praias, na Carolina do Sul, Estados Unidos. Foi levado para o mar por surfistas, a 2 de Junho de 2012. A 20 de Agosto dava à costa em Oderin, uma ilha na Terra Nova: Alphonsus Murphy, do porto de Baine, encontrou-o danificado dos lados, como se tivesse andado aos tombos. Daí, foi transportado para São João da Terra Nova; reparado na Escola de Tecnologia dos Oceanos do Instituto Marinho; e lançado no mar a 12 de Outubro, a oeste dos Grandes Bancos, pela tripulação de um navio de abastecimento de plataformas petrolíferas.

Nesse mês, sobreviveu ao furacão Rafael. No início do seguinte, enfrentou outro furacão, o Sandy. Pensou-se que tinha sido o fim, porque durante dois meses o seu transmissor via satélite não deu sinal de vida. Até que foi encontrado outra vez, afinal só o transmissor é que estava avariado. Tinha atravessado o Atlântico, até a uma praia perto da cidade de Carmarthen, no País de Gales.

“Dois membros da nossa equipa encontraram o barco durante as nossas inspecções de rotina das praias”, contava ao Carmarthen Journal Katie Martin, do gabinete de ambiente e ligação à comunidade local do Campo de Pendine do Ministério da Defesa britânico. A 9 de Janeiro de 2013, Katie Martin comunicava a descoberta por email.

Substituído o transmissor avariado, o Charger viajou em seguida como passageiro de um navio de contentores, o Philadelphia Express: a tripulação devolveu-o ao mar a sudoeste dos Açores, a 30 de Março de 2013. Quase um ano depois, o rio Connecticut “desaguava” na praia da Torreira. “A pintura já não se notava bem. Não tinha vela, estava cheio de moluscos”, descreve Vanessa Rodrigues.

Útil à ciência
Em Lisboa, as mazelas que trazia foram suavizadas. “O casco estava em mau estado. Tinha um buraco na quilha”, diz Luís Sebastião, do Instituto de Sistemas e Robótica do IST, que o reparou. Além de uma pintura do casco (agora é amarelo e só restam as pegadas de dinossauro e as palavras “Deep River”), recebeu um GPS novo com baterias e uma vela (enviados pelo Educational Passages) e mastro foi reforçado com fibra de vidro.

Por outro lado, os investigadores do Maretec lembraram-se de o utilizar nos seus estudos. Afinal de contas, o centro tem desenvolvido ao longo dos anos um modelo de computador para simulação integrada do sistema hídrico – o MoHid –, que permite prever, por exemplo, o que acontece a um objecto à deriva no mar, ao sabor dos ventos e das correntes.

A primeira versão do MoHid é de 1985: começou por ser criada por Ramiro Neves, actual director do Maretec, na sua tese de doutoramento, para modelação do sistema hídrico de estuários e zonas costeiras. A partir daí, o MoHid, a sigla portuguesa de Modelo Hidrodinâmico, mantida desde a versão inicial do programa, foi sendo aperfeiçoado. Além dos estuários e das zonas costeiras, é actualmente aplicado ao mar aberto, a rios, bacias hidrográficas ou aquíferos, para simular diversos processos físicos, químicos e ecológicos. “Hoje em dia, é usado por muitos investigadores em todo o mundo. Foi criado no Maretec e é gratuito”, explica Hilda de Pablo.

Se desaparecem pessoas no mar, o MoHid pode ajudar a saber onde irão ter os corpos. Se se lançarem águas dos esgotos no mar, pode simular a sua pluma, como aliás já ocorreu para as residuais da linha de Cascais, lançadas pelo emissário submarino da Guia. Ou, entre outras aplicações, ajudar a prever que praias serão afectadas por uma contaminação microbiológica. “Como faz previsões a dois ou três dias, é uma ferramenta de ajuda à gestão das zonas costeiras”, frisa Hilda de Pablo.

Para calibrar o MoHid, os investigadores do Maretec utilizam, por exemplo, bóias à deriva de propósito no mar. É aqui que o Charger pode ser útil: partindo da sua última posição conhecida no mar, pode simular-se a rota a três dias utilizando o modelo (as previsões só são possíveis para esse período, porque, entre outros aspectos, os ventos são muito aleatórios). Comparando depois as previsões com a rota efectiva seguida pelo barco, poderá afinar-se ainda mais o MoHid. “A ideia é validar o nosso modelo a partir destes objectos à deriva”, explica Francisco Campuzano.

“Com o barquinho também podemos calibrar uma parte do nosso modelo”, especifica ainda Hilda de Pablo, referindo-se à parte hidrodinâmica. O Charger não permitirá fazer calibrações na parte biogeoquímica do modelo: “Não dá nenhuma informação da temperatura da água, salinidade, oxigénio... Só nos dá a posição: se largarmos um barco no mar, onde é que ele poderá dar.”

A sua passagem por cá também despertou a ideia de criar um programa educativo semelhante, em colaboração com o Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica, revela Luís Sebastião. “Mas com alguma robótica.”

Na realidade, o Charger já começou a nova etapa da sua vida. Alargando a corrente de solidariedade por onde tem passado, investigadores da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC) levaram-no no final de Maio, no navio Almirante Gago Coutinho, quando partiram para os seus trabalhos científicos a norte dos Açores. A 30 de Maio, estavam então a meio caminho entre o cabo de São Vicente (Sagres) e Ponta Delgada, deixaram-no de novo à sua sorte.

Agora, além dos alunos que o adoptaram nos Estados Unidos, está a ser seguido com atenção pelos investigadores quer do Maretec quer do Instituto de Sistemas e Robótica. Aliás, para comemorar um mês desde que partiu de Portugal, um estagiário do grupo de Luís Sebastião, Tiago Dias, desenvolveu uma interface para o seguir com mais informação, calculando automaticamente algumas estatísticas. Neste mês e pouco de navegação sozinho, completou 3100 quilómetros, à velocidade média de 2,08 nós (quase quatro quilómetros por hora): “O que é notável para um barco de 1,4 metros de comprimento”, considera Luís Sebastião.

“Este barquinho já correu meio mundo e contactou pessoas diferentes. Esperamos que continue a correr outro meio mundo”, deseja Hilda de Pablo. “Achamos esta história interessante em várias componentes: a oceanográfica, a ligação de instituições de dois lados do Atlântico, o funcionamento das redes sociais, o lado humano...”, resume Francisco Campuzano. “Temos tido tanta sorte por as pessoas que encontraram o Charger’ serem tão generosas”, diz ainda Barbara Nidzgorski.

E se o Charger conseguisse recriar a viagem de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo, em 1492? “Colombo chegou às Baamas. Foi aí que também começou isto [a viagem do Charger]. É uma coincidência”, conta Richard Baldwin. Se já reproduziu mais ou menos a viagem de Colombo ao contrário, de lá para cá, o sonho é que agora faça o mesmo para lá. “Isso seria tão fixe!”, diz. “Colombo seguiu os ventos e as correntes e o Charger pode estar a fazer um trajecto semelhante, de volta a San Salvador [ilha das Baamas] ou à América. O que é interessante neste barco é que usa as forças mais antigas do nosso mundo e, ao mesmo tempo, é seguido por tecnologia de satélite.”

Para já, está a viajar para sul. Passou perto da Madeira, ao largo das Canárias e agora a está oeste de Cabo Verde. “Há um grande factor aleatório. Este barco vai para onde o vento o levar. Quando há pouco vento, o efeito das correntes passa a ser mais forte. Pode voltar a Portugal, pode ir parar aos Açores, a Marrocos…”, diz Luís Sebastião. “Neste momento, está a seguir um padrão de ventos que Colombo aproveitou na viagem para lá. Vai seguindo para sul, para apanhar os ventos para ir para oeste. Uma das possibilidades é ir parar ao Brasil.”

Na imensidão azul do oceano, é uma minúscula casca de noz amarela. No compartimento que tem para troca de prendas, segue acompanhado apenas por uma bandeira de Portugal, um postal com fotografias do país, uma garrafa pequena de vinho do Porto. No convés, lembraram-se de lhe colar um galo de Barcelos.

Por isso, quando perguntamos a Barbara Nidzgorski o que já aprenderam os seus alunos sobre Portugal, a resposta pronta é: “Minha nossa! Aprendemos tudo sobre o galo de Barcelos.” Até já encomendou um para os alunos.

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