Escolher o mundo em vez da família

Dois irmãos, separados depois do divórcio dos pais, congeminam estratagemas para remediar a situação e voltarem a estar todos juntos outra vez

Em Portugal conhecemos o japonês Hirokazu Kore-eda (n. 1962) através de Ninguém Sabe, um filme de 2004 que era um espantoso, tanto quanto brutal, retrato de um grupo de crianças, construído a partir da história verídica de uma mãe que tinha deixado ao mais completo abandono os seus muitos filhos. Era um olhar sobre a infância poderosíssimo, totalmente desprovido de clichés e lugares-comuns, do género que no Ocidente (Europa ou América) se tornou raro ou quase impossível (sublinhamos o “quase”: um filme como Nana, de Valérie Massadian, mostrou-nos recentemente que ainda não é impossível). Ninguém Sabe, ultrapassando o seu negrume muito cru - afinal, era uma situação “extrema” - terminava em sobrevivência e aceitação. “Sobrevivia-se” à infância, aceitavam (os miúdos) a noção difusa da transitoriedade da infância, acolhiam a vida que, vistas bem as coisas, estava ainda toda pela frente.


Oito anos depois, com O Meu Maior Desejo, Hirokazu Kore-eda volta ao universo infantil para uma história que se conclui na mesma aceitação, no mesmo vislumbre de um amadurecimento apenas intuído: “escolhi o mundo em vez da minha família”, ouve-se dizer depois da cena crucial e vagamente anti-climática de O Meu Maior Desejo. É a espécie de moral da história deste belíssimo filme.

Muito menos “extremo” do que Ninguém Sabe; pelo contrário, as vidas dos seus jovens protagonistas são bastante banais, e aquilo que é magnífico no filme é justamente a maneira como filma essa banalidade sem a trair (quer dizer, sem “inventar” razões para a transcender), mas ao mesmo tempo sem trair o olhar dos miúdos - que evidentemente, e como todos os miúdos, se imaginam especialíssimos, como se estivessem no centro do mundo e possuíssem algum tipo de poder capaz de o influenciar. E eis portanto como dois irmãos, separados depois do divórcio dos pais (um ficou com a mãe e os avós, o outro foi viver com o pai), congeminam estratagemas para remediar a situação e voltarem a estar todos juntos outra vez. Pensamento mágico - como também é normal, os miúdos pensam que são eles que tomam conta dos pais e não o contrário - levado ao extremo do wishful thinking: parece que, por razões insondáveis, quando dois “comboios-bala” se cruzam a alta velocidade existe uma tal condensação de energia que qualquer desejo formulado nesse momento será inevitavelmente concretizado. Os dois irmãos, separados fisicamente mas unidos pelas maravilhas da tecnologia moderna (os telemóveis), organizam então uma vasta operação logística, de modo a estarem presentes no exacto momento e no exacto sítio em que os “comboios-bala”, de uma linha recentemente inaugurada entre as cidades de ambos, se cruzarão. É praticamente toda a história do filme.

Arrancada ao quotidiano, à escola, à televisão, aos primeiros interesses por raparigas e às primeiras raparigas interessadas, ao retrato em segundo plano dos adultos (a mãe e as suas dificuldades económicas, o pai e os seus “sonhos rock and roll” semi-frustrados, os avós e a sua profunda serenidade, como japoneses vindos de um filme de Ozu). Toda esta modernidade, tecnológica e social, testemunhada pelo que é antigo, pelo que sempre ali esteve: a sombra do grande vulcão perto de Kagoshima (que também serve para as fantasias da reunião: “se houvesse uma erupção tínhamos que ir embora e ficávamos todos juntos outra vez”), representando tudo o que é ancestral, o Japão “antigo” mas também a força da natureza, tudo o que na vida é indomável. A própria vida: a cena final de O Meu Maior Desejo é o que de mais parecido com o plano final da Viagem a Tóquio (com uma criança em vez do velho Chishu Ryu) alguém conseguiu filmar (de resto, talvez desde Bom Dia! que não víssemos miúdos japoneses assim). Não é a mesma coisa, não; mas está muito bem como está.

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