O tempo exacto

O quinto livro de poesia de António Carlos Cortez demonstra uma maturidade estrófica e silábica invulgar em poetas jovens

A poesia e a crítica de António Carlos Cortez (n. 1976), que escreve no "Jornal de Letras", recusam aquilo que se tomou a dado momento pelo estilo hegemónico entre os "novos", um estilo em geral identificado com o realismo e o quotidiano. Entre o impulso romântico e a sofisticação oficinal, Cortez explorou caminhos diferentes. "Depois de Dezembro" é a sua quinta colectânea. Anteriormente publicou "Ritos de Passagem" (1999), "Um Barco no Rio" (2002), "A Sombra no Limite" (2004) e "À Flor da Pele" (2008). O motivo que faz do novo livro o melhor dos cinco é o seu diálogo seguro com a poesia portuguesa contemporânea e a sua respiração quase clássica

Nota-se nestes poemas uma preocupação estrófica e silábica invulgar em poetas jovens. O poema é medido, ritmado, polido, muitas vezes com recurso à rima. Isso permite a Cortez eliminar a estética torrencial e palavrosa de muita poesia preocupada com o "sublime", e que nunca fez mais do que descarga de vocábulos. A palavra "maturidade" é talvez o termo que melhor define esta colectânea. Insistindo bastante no tema da "poética" (o que faz e como se faz um poema), Cortez consegue acompanhar essa reflexão teórica com uma prática. Os poemas são uma poética na sua própria construção, e não apenas no tema.

Há nestas páginas muitos ecos de poetas portugueses, de Ruy Belo a Luís Quintais, mas a leitura de Gastão Cruz marcou especialmente o autor. É o Gastão mais conceptual, preocupado com a definição de fronteiras entre "a vida" e "o poema". O primeiro texto do livro fala logo de uma "linguagem há muito dissolvida / e sem significado para dizer a vida". Como acontece com quase todos os poetas, esta angústia não conduz à afasia mas ao ensaio e erro. Tal como acontece com "a vida".

Regressando à temática passional e em especial a um amor amargo, Cortez escreve que o regresso é um modo de acabar, e se isso é verdade humanamente, ainda é mais verdade poeticamente. Nestes poemas, os recorrentes motivos aquáticos não são apenas geografia, são imagens de um passado que flui perpetuamente. O passado, que na verdade nunca passa, é "um outro tempo", e não apenas no sentido óbvio da expressão; é um tempo diferente, um tempo de outra natureza. E o poeta pergunta: "Depois de nos esquecermos de quem fomos / como voltarmos ao que somos / se outros voltamos do mergulho?" (p. 25). A primeira pessoa do plural remete para a condição humana mas também para a experiência do casal.

"What does the song hope for?", escreveu Yeats, citado numa epígrafe, e é disso que se trata aqui: a que é que um poema aspira? Cortez conhece bem a estética do fingimento, e não ignora a ideia de que a poesia é uma luz enganosa e inútil. Mas em vários textos dá indícios de que continua a acreditar no poder da transfiguração, a que chama, eis a ironia, um poder realista: "Agora dentro da paisagem / real não sei se havia / consciência do vivo / sonho do poema no / tempo abstracto // O texto escrito traga / o tempo exacto / tornando o facto / da poesia / outro tempo oculto / a única verdade" (p. 21).

Estas meditações contidas retomam o conceito de "emoções linguísticas". Os poemas são frequentemente magoados, trazem recordações biográficas de uma ternura engolida pela lava, mas esse "engano transformado" faz-se coisa mental, recriação, objecto. Já que nada sobrevive, nem sequer nós, que fiquem, ao menos hipoteticamente, as palavras. António Carlos Cortez acredita que "a poesia" é para "a vida" uma linha paralela. E que os versos são "mais reais talvez que o mundo vivo".

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