Yonamine confessional

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Dólares falsos chineses preenchem a palavra CIF, sigla inventada de uma China International Foundation DANIEL ROCHA

Uma exposição pode ser uma viagem. Uma conversa pode ser uma confissão. Só China é Yonamine a nu, na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa

No mundo interior de Yonamine (n. 1975), como num caleidoscópio, cada partícula solta-se e desintegra-se antes de se entregar a uma união cósmica, total. Cada pontinho no espaço esconde uma constelação de pequenas ou grandes coisas, e estas reflectem encontros fortuitos entre um passado muito distante e um presente quase futuro. Com antepassados, sem identidade.

O meu nome é Yonamine. Miguel Fernandes Sebastião. Mas esses são nomes que não uso. Um era do meu avô materno. O outro do meu avô angolano - chamava-se Nzauaguida e o português disse-lhe que ele tinha de se chamar Sebastião. Quem olhar para o meu trabalho não sabe de onde venho. Sinto-me mais à vontade assim. O meu nome existe no Japão, e no Uganda como Yonahamine. Os meus pais gostaram, tiraram o H e fizeram Yonamine.

Nesse mundo interior que se reflecte na sua obra, nada é o que parece e cada imagem tem interpretações múltiplas, duplos sentidos - da palavra e do pensamento. O visitante pode entrar nesse mundo na mais recente exposição do artista em Lisboa, Só China, inaugurada há uma semana na Galeria Cristina Guerra.

Uma parede pintada poucas horas antes da abertura da exposição, no dia 22 de Março, será de novo apagada e pintada de branco no fim da exposição, a 9 de Maio. Nessa parede, pintura efémera, homenagem eterna a uma pessoa que lhe desapareceu em poucos meses, há pouco tempo; uma pessoa que sempre o ajudou quando ele fazia o seu caminho para se tornar um dos mais conceituados nomes da nova vaga de artistas que puseram os coleccionadores a olhar para a arte contemporânea que se faz em Angola.

Actuei directamente na parede. É uma coisa expressiva, sentimental. Acho que nem tudo na vida tem de ter preço, nem tudo é dinheiro. Talvez seja abrir a minha intimidade para as outras pessoas. Estou a mostrar quem sou às outras pessoas. E isso não se vende. Dá-se, oferece-se.

Diante das suas peças, "as pessoas podem viajar para onde quiserem", diz. Para Yonamine, têm um sentido íntimo. Reconstituem um passado, ironizam o presente, filtram mágoas, ajudam a viver. "A arte é um amortecedor de emoções."

Quero fazer um trabalho sem identidade. Sinto-me cidadão cósmico, cosmopolita. Estou a seguir a minha vivência, os caminhos por onde passei. O meu trabalho podia ser feito por um japonês, um português, um alemão, um africano.

Yonamine já viveu em Angola, no ex-Zaire, no Brasil e no Reino Unido. Participou em exposições colectivas em vários pontos do mundo - na ARCO em Madrid, no Pavilhão Africano da Bienal de Veneza, na Bienal de São Paulo, onde fez em 2010 a sua sexta individual. Esta é a sétima. Desenvolve projectos em várias cidades, em residências ou com bolsas de estudo. Esteve na Austrália e parte em breve para a Alemanha. Lisboa é a sua base, onde vivem os três filhos. E Luanda, onde nasceu há 37 anos, está presente na sua cabeça. "Mas Luanda não é de ninguém. É um espaço para nós dividirmos."

Muitas vezes esqueço-me de onde vim. Mas, quando me lembro, fico triste porque não tenho muitas referências lá mesmo, não tenho um museu que mostre o que os meus antepassados fizeram, não tenho uma biblioteca em Luanda. [A única que existe é a do Instituto Camões.]

Yonamine é de Luanda apesar de se sentir também bacongo. Os pais são do Norte. Mãe do Soyo, pai da província angolana do Zaire, nascido em Mbanza-Congo, onde, durante muitos séculos, viveram aqueles que foram reis do Congo.

Estou a tentar resgatar o máximo que posso sobre mim para poder dar uma educação melhor aos meus filhos. Para terem uma estética diferente sobre o que é África, o que nós somos. Para eu não ter de ir a Nova Iorque ver as obras dos nossos antepassados. As nossas referências foram todas levadas. Estamos a criar novas referências e a pegar as poucas que sobraram para criar uma memória.

Sobre as suas origens, conta uma história. Com ela mostra que, vindo uma parte dele de Mbanza-Congo, "talvez até seja mais de Luanda do que os próprios luandenses". É a história do rei do Congo que vivia onde o pai de Yonamine nasceu. Luanda era o banco do rei, a baía onde ele ia buscar búzios que usava como moeda, dinheiro, o zimbo. "As primeiras pessoas que foram viver para Luanda eram as pessoas de Mbanza-Congo que iam buscar os pequenos búzios para o Rei do Congo." O reinado ia até ao Gabão. Quando morria o rei, o povo não era logo avisado, para não haver uma convulsão. Só muito tempo depois se anunciava o nome do sucessor.

Hoje o rei é José Eduardo dos Santos, Presidente de mais de 30 anos de poder. E com ele, ou o seu desaparecimento, também se temem convulsões. "Ele ama o seu país e o amor cega." Mais não diz sobre essa figura central de uma das suas mais recentes obras, que não integra a exposição mas pode ser vista na mesma galeria. Chama-se A vitória é certa e reproduz, num estilo pop-art, uma fotografia de um exemplar do Jornal de Angola datado de 1976, um ano depois da independência de Angola. É a fotografia (transformada pela pintura, pela colagem, pela serigrafia) de uma equipa do MPLA num jogo de futebol contra a equipa das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola), "um jogo entre compatriotas para assinalar a independência, a nova fase de Angola".

Eu cresci em Luanda numa época em que ainda cantávamos o hino antes de entrarmos para a escola e falávamos as palavras de ordem como A vitória é certa. São coisas que me ficaram na cabeça e que, se eu puder transformar de uma maneira poética, dando aos meus trabalhos títulos a partir do que vivi e não do que me contaram, ganham muito mais sentido.

A vitória é certa foi feita em 2009, mas é uma obra inédita. Nunca foi mostrada numa exposição. Em todos os jogadores, Yonamine copiou a cara de Eduardo dos Santos, Presidente da República e líder do MPLA.

Esta personagem estava lá. Foi o meu modelo, o modelo que escolhi para trabalhar. Desde que eu existo como angolano, o partido no poder é o MPLA, está sempre a ganhar. É um partido que sabe jogar. Não sei se o árbitro foi comprado. Mas são bons futebolistas. Jogam de maneira a ganhar.

Nas paredes ou no chão, várias obras. Instalações, pintura, colagem, serigrafia, vídeo. Ou uma só em que tudo se liga por um fio invisível? Só China é o título. Em todas as peças há um sentido diferente do lugar - China - no mundo. Ou da palavra: também há réplicas e tatuagens feitas a tinta-da-china. Num canto de uma grande tela, imagens que evocam a arte no Vaticano sobre páginas de anúncios de sexo pago em jornais chineses e a imagem de uma Sugar Babe que se dá por 130 dólares.

Hoje fala-se de pedofilia e o Vaticano sempre teve pedofilia, crianças nuas a fingir que são anjos. E agora todos os dias se ouvem os escândalos de pedofilia que envolvem a Igreja católica.

Dólares falsos chineses numa parede preenchem a palavra CIF - símbolo de uma sociedade de consumo mas também de uma China International Foundation, sigla inventada numa era em que o China Power substitui o America Power.

Eu sou de uma geração digital - posso ver a independência de Angola na televisão porque foi filmada. Sou da geração Coca-Cola. Estou à procura de um nome para a geração nova que vem. A que passou era a do poder da América, agora é a do poder da China. Não só em Angola. Em todo o mundo: na Austrália há mais chineses do que aborígenes.

Numa parede, então, o mapa de Portugal a ser levado pelo braço de um chinês tatuado com dois dragões - "foram os chineses que compraram a EDP". Em Luanda, como uma alucinação, surgiu no horizonte um prédio revestido de monitor (de computador). Fica toda a noite aceso a projectar desenhos animados ou futebol para quem está do outro lado da baía, na Ilha de Luanda. É obra de uma China omnipresente, como reflexo e contraponto da ideia passada de uma América dominante. Com ela acabou a Coca-Cola, ou a coca de que Yonamine só fisicamente se desprendeu.

A maneira de nos divertirmos hoje acaba sempre por ter uma Coca-Cola ou uma cocaína. A cocaína marcou a minha vida. Perdi muitos amigos, uns estão loucos, outros morreram. Alguns, no Brasil, tornaram-se padres evangélicos. Em Angola também, mas em Angola é mais difícil consumir estas drogas e viver naquele clima pesado onde tudo é difícil. Uma adição em qualquer parte do mundo já é um problema. Imagine-se uma adição num país que já é uma adição, que já é uma doença, que já é um vírus.

Na exposição, um vídeo em 12 monitores - o mesmo número dos 12 passos dos Narcóticos Anónimos. Mas não foi pensado, aconteceu quando se deixou levar pela intuição. No vídeo, umas luvas escondem um par de mãos a transformar uma lata de Coca-Cola (ou de outra bebida) num cachimbo para fumar cocaína. Em fundo, um som de repetição, alienação, ritual, obsessão.

Furei latas diferentes e tentei fazer uma orquestra. É uma orquestra sem maestro que leva o som do desespero, da vontade de morrer, da vontade de viver.

Procura as palavras, fixa a peça com uma sombra no olhar vago.

Acho que estou a assumir o que sou, de onde vim, quem sou. Não vale a pena fingir. Sou um adicto e serei um adicto para sempre. Sou dependente de químico para sempre. Mesmo sem estar a usar, sou sempre dependente, na minha cabeça. É uma coisa que existe, existe tanto que faz parte da minha obra.

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