O trauma pode-se experimentar?

O mais novo museu de Nova Iorque quer lembrar o que não pode ser esquecido numa grandiosa encenação do trauma. Familiares de vítimas, nova-iorquinos, americanos, estrangeiros, vivem-no cada um de um modo particular. É a memória colectiva feita a partir de estilhaços individuais.

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No National September 11 Memorial Museum houve uma tentativa de equilibrar a emoção com a dificuldade de contar a história AFP/JUSTIN LANE
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Foram recolhidos cerca de 10 mil objectos que fazem parte do acervo do museu REUTERS/Shannon Stapleton
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Os tridentes faziam parte da forma da estrutura exterior em aço das Torres Gémeas Jin Lee
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A base dos tridentes Jin Lee
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Ecrã inteactivo Jin Lee
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Escada e carro de bombeiro do quartel nº3 Jin Lee
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A viga de sustentação da Torre Norte (à esquerda), pintada, com colagens-fotografias, é o grande emblema do museu Jin Lee
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Escada dos sobreviventes Jin Lee
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Barack Obama falou na inauguração do museu REUTERS/John Angelillo

O que há para ver que ainda não tivesse sido mostrado? A pergunta é repetida em muitas línguas, tem várias formulações, mas está implícita em quase todas as conversas de quem tenta entrar no mais novo museu de Nova Iorque. Em todos parece haver um não saber estar num sítio como aquele.

 O que pensar perante a bandeira americana remendada que há quase 13 anos andou durante dias pelo chão, entre os destroços das torres caídas, e é agora estendida por polícias e bombeiros? Faz-se silêncio no acto simbólico a marcar o dia da inauguração.

Barack Obama falou dias antes e agora é a vez do Jeff Parness, o presidente da fundação que gere o espaço de mais de 30 mil metros quadrados onde está incluído o memorial e o Museu do 11 de Setembro, que suscita opiniões diferentes entre americanos, nova-iorquinos em particular, turistas, toda a gente que viveu, de longe ou de perto, aquela manhã em Manhattan. “Estamos aqui para lembrar, prestar homenagem e aprender sobre o que aconteceu a 11 de Setembro. Mas também para lembrar e homenagear o que aconteceu a 12 de Setembro”, disse Parness a um grupo de crianças de escolas, demasiado novas para terem testemunhado os ataques que aquele museu pretende não fazer esquecer.

Os primeiros visitantes começaram a fazer fila às oito da manhã. As portas abrem às nove. Os jornais já escreveram sobre o assunto, as televisões já mostraram imagens, mas as câmaras continuam ligadas. De microfone na mão, os jornalistas querem testemunhos, mais vozes, e o olhar apressado de um observador concluiria que os turistas se distinguem dos nova-iorquinos pelo semblante. Uns vêm em grupo, outros sozinhos, mas não há um modelo para tipificar os sete mil que conseguiram bilhete para aquele dia, a que se juntam centenas de outros que tentaram a sorte. Todos os que vierem nesse dia para esse dia vieram em vão.

Mais ou menos silenciosos, andam à volta de uma estrutura de metal e vidro a simular uma torre caída. É a parte visível do museu, um conjunto anguloso, horizontal, no canto nordeste da praça que homenageia as 2977 vítimas dos atentados de 11 de Setembro de 2001, mais os seis que morreram na bomba que a Al Qaeda fez explodir no World Trade Centre, em 1993. É quarta-feira, 21, o dia oficial de abertura ao público.

Na semana anterior, o museu esteve aberto, de forma gratuita, a familiares de vítimas, moradores dos bairros mais próximos, a quem trabalhou no salvamento e rescaldo dos atentados, a escolas. Ainda não é uma da tarde e o melhor que se consegue é um bilhete para sexta-feira ao fim do dia. Vai ser assim nos dias que se seguem: pelo menos 48 horas de antecipação antes de obter uma reserva.

Vincent Scott tem os dedos à volta da lente da máquina que traz ao pescoço. Estudante de fotografia, 28 anos, longos cabelos lisos que passam os ombros e uma enorme frustração. Por quanto tempo terá falhado uma entrada? “Não sabia que as reservas para hoje tinham sido esgotadas on-line. Quis vir mais cedo, mas parece que não teria servido de nada.” Vai ter de voltar a Boston no dia seguinte sem ver o museu. Quando se pergunta “o que esperava ver?” não sabe bem o que dizer.

“Era muito novo em 2001.” Olha à volta. Não é a primeira vez que está ali. Desde que a praça do Memorial abriu, em Setembro de 2011, já passaram por lá cerca de 12 milhões de pessoas. Mas agora há um museu que vem completar um investimento de mais de 500 milhões de euros previstos para o projecto Memorial 9/11. É uma enorme praça de pedra, onde foram plantados 400 carvalhos e que inclui dois tanques de água gigantes a assinalar as fundações das duas torres. Em cada um, estão gravados os nomes de cada uma das vítimas.

Ao contrário do que acontece quase todos os dias, quem se passeia pela praça do Memorial não são apenas turistas, embora continuem em maioria a picar mais um ponto no mapa de locais obrigatórios em Nova Iorque. Vicent pareceu ter tido tempo para ver tudo isto no espaço de uma pergunta. “Acho que não espero bem uma revelação; mostrou-se tudo, não foi? Talvez seja ir lá, estar no sítio, ver como organizaram uma memória”, diz, com os olhos na fila que avança para a entrada do museu, hora marcada, uma média de 250 pessoas a cada meia hora. Mais ou menos. “Tudo depende do ritmo das saídas e esse é imprevisível”, avisa um dos funcionários que já repetiu “hoje é impossível”, vezes sem conta.

Equilíbrios difíceis

Anna Shwartz está desse lado. De quem já viu. É americana, aparenta uns 55 anos. Sai em silêncio. Veio de perto, de Brooklyn. Estava de folga no hospital onde é enfermeira. “Queria tentar perceber, não sei. Estou emocionada. Conseguiram criar um ambiente que nos faz reviver a angústia desse dia, mas também me senti a invadir um território que não sei se era o meu. É complicado.”

Chove e as fachadas do edifícios em volta são espelhos de uma luz filtrada por nuvens incertas. Não é chuva que afaste ninguém. Um grupo de indianos, elas de sari, faz pose junto ao edifício desenhado pelo gabinete norueguês de arquitectura Snøhetta. Metal e ferro como numa construção deformada. Uma espécie de prémio de consolação depois de terem assinado o melhor projecto de recuperação do Word Trade Centre, segundo o júri. Acabou por não ser aprovado por alegada inviabilidade financeira.

Estamos em território vigiado pela autoridade portuária de Nova Iorque e New Jersey. Todos os que ali estão consentem essa vigilância apertada. É o compromisso pós-11 de Setembro, num lugar cheio de contradições por gerir. A tragédia e a curiosidade. Ver o quê? São ecos. Um idoso agarrado a um andarilho vai com o rumo traçado. Aponta à porta do museu com bilhete na mão. Mesmo ao lado, um grupo de rapazes sorri para os incontornáveis selfies. As portas voltam a abrir. Pergunta-se a uma funcionária qual o tempo estimado da visita. “Entre três a cinco horas.”

Aberto todos os dias das oito e meia da manhã às oito e meia da noite, o museu espera entre 5 a oito mil visitantes diários. À entrada não há uma recepção calorosa. No átrio, antes a frieza de um aeroporto onde a segurança é apertada. Dois gigantescos tridentes oxidados, sobreviventes do embate do avião na Torre Norte, vigas de suporte do edifício, surgem na vertical como símbolo de um vazio que se há-de sentir. São os primeiros passos.

Estamos no primeiro piso do museu, o único ao nível do solo, o único com luz natural. Descer as escadas rolantes até ao átrio principal é como entrar num grande terminal de transportes, ou num liceu antes do toque para as aulas. Um imenso burburinho. Vozes, risos, passos apressados que se misturam com sons a sair de ecrãs e que só poucos ouvem pela primeira vez. São os sons da manhã de 11 de Setembro de 2001 na baixa de Manhattan. E as mesmas imagens numa encenação estudada para causar emoção. Alice Greenwald, directora do National September 11 Memorial Museum, disse aos jornalistas que houve uma tentativa de equilibrar a emoção com a dificuldade de contar a história. Mas é um arame muito fino o que se sente naquele espaço concebido pela equipa de Davis Brody Bond.

É como estar a entrar numa imensa caverna da qual cada visitante está sempre a ser avisado que pode sair, mas onde continua. Desde o primeiro momento, a replicar os sons do embate, projectar os rostos das vítimas numa parede, e o conjunto do que se ouve e vê não é perceptível a um primeiro plano. É ruído, penumbra. O que se vê, se sente, se escuta é o individual de um colectivo que se quer ali, mas a partir do singular. Nos cerca de 10 mil objectos recolhidos que fazem parte do acervo. Outro exemplo: as mensagens telefónicas que alguns dos funcionários nas torres enviavam para familiares. Há sempre um nome, uma voz, uma frase. A emoção retira-se desse desconhecido que ganha identidade e é por ele e por cada um de todos os quase três mil que morreram que os cerca de 1100 metros quadrados do museu se organizam. Alguém falou em experiência do trauma. Estar o mais próximo possível para o tornar inesquecível. No momento em que se passa por uma das salas onde se projectam testemunhos sobre o 11 de Setembro ouve-se a voz de Bill Clinton: “não podemos estar tão obcecados com a nossa segurança ao ponto de isso acabar com a nossa liberdade.” Fará a frase o mesmo sentido para um americano e para um estrangeiro que visite o museu?

Voltemos a Vincent, ao que não entrou. Remói sobre o sentido, o que o levou ali. “Acho que é pelo sítio. Foi aqui”, diz. Foi ali que aconteceu tudo. Para Vincent, o rapaz da máquina fotográfica isso é o que faz a diferença. O lugar onde dizem estar ainda oito milhares de vestígios de corpos, que muitos dos familiares consideram profanados em nome do comércio e do turismo, que se manifestam contra a loja de recordações ou o restaurante que irá abrir. Quem concebeu o museu diz ser um lugar de homenagem, a “honrar”, um sítio para “educar” e “lembrar a história.”

Anna Shwartz também falou de ser tudo muito recente, de custar a digerir. Pagou 24 dólares (cerca de 17, 50 euros) por um bilhete. É o preço de adulto para um museu sem fins lucrativos com custos de manutenção que ultrapassam os 45 milhões de euros por ano. O argumento não acalma os familiares de vítimas, sobretudo esses. Nas contas que se fazem há sempre o conflito entre a emoção e… A organização fala de “equilíbrio entre a experiência individual e colectiva”.

A visita continua também com estes sons. Muita informação a gerir. Passado o átrio, as primeiras imagens, há uma espécie de varanda para o que parece uma vertigem de onde sai a viga de sustentação da Torre Norte. Pintada, com colagens-fotografias, testemunhos de anos de reconstrução. Ela é o grande emblema do museu em contraste com a parede de betão armado, uma barreira profunda contra avanços das águas do Hudson, ali bem perto, o que subsiste da cave da torre, e o chão que ficou tal como era, uma janela de uma das torres emoldurada. É a grande moldura.

Descemos a vinte metros de profundidade, até esse subterrâneo onde está organizada a zona de exposição. É o equivalente a sete andares por umas escadas rolantes colocadas no mesmo sítio onde foram postas as que serviram para resgatar vítimas. A iluminação artificial não deixa ver tudo. A ideia de subterrâneo é para ser vincada.

É ali que está organizada a parte histórica, em três espaços distintos: o do embate da primeira e da segunda torres, os dias e meses que se seguiram e, por fim, uma panorâmica sobe o que é a Al Qaeda. Em todos os ambientes, as imagens e os sons remetem para a tal singularidade. Vozes, objectos pessoais, pedaços de aviões, peças de carros de salvamento, carros de bombeiros meio calcinados, bilhetes de metro, chinelos, bandeiras dos EUA rotas, primeiras páginas de jornais do dia 11 de Setembro de 2001. No fim, pede-se recolhimento e uma oração. Um rapaz pergunta ao pai se acabou. Ele não tem memória desse dia. Mas no fim há apenas uma certeza, a de que a América não quer esquecer o 11 de Setembro de 2001. E a de que um museu como este é tão singular quanto o ataque que lhe deu origem. No fim, há muitas perguntas. 
 

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