CEE: crónica de umas eleições europeias

Um homem grita com o amigo com quem grita sempre. O amigo contrapõe com um berro mais contido enquanto mira o céu. O homem imita-o. Têm nas costas a mesma toalha de piquenique, mas quando olham para a frente – isto é, para cima – não vêem o mesmo azul. Ambos vêem as nuvens. Ambos sentem o vento frio. Mas só o homem está de calções. Avisaram-no para se agasalhar, mas ele arriscou, argumentando que não podemos adiar indefinidamente a Primavera até que ela nos caia de podre em cima do colo. E argumentando ainda: sempre que possível temos de ser a Primavera, para não sufocarmos no Verão.

Um homem vai para uma esplanada ver a final da Liga dos Campeões e não encontra os seus irmãos espanhóis. Numa cidade a abarrotar de adeptos madrilenos, tudo o que tem à sua volta são telhados de Lisboa. Quando chega à esplanada, a esplanada está vazia. Após o golo do Atlético de Madrid, reflecte e escreve uma metáfora sobre a Europa que mais tarde transcreverá para um caderno: o que terá acontecido ao bom e velho Casillas?

Um homem volta a casa para jantar, vê televisão e agarra no telemóvel. Passa a hora a ler mensagens partilhadas nas redes sociais. Todos os que intervêm fazem-no para apelar ao voto. Puxam pelo brio. Apelam à honra. Bramem o cosmopolitismo. Clamam: a vergonha da abstenção. O desinteresse. A negligência cívica. Acusam. Acusam de tudo. Debalde, como se verá. Os eleitores ignorarão as eleições europeias com a mesma vontade de quem lambe dos beiços os cominhos que sobram no bigode da malga de papas de sarrabulho. Há respostas às incitações à participação eleitoral: desresponsabilização, autocomplacência, autocomiseração.

Um homem vai para a cama e, em vez de deitar-se, senta-se. Tenta dar sentido ao dia de reflexão e pensa. Tira notas. Nada aponta sobre literacia. Nada aponta sobre a “qualidade” dos políticos. Nada aponta que não seja: um homem grita com o amigo com quem grita sempre. Fecha o caderno e abre o Saramago. Não está disposto a dispensar o seu voto a eurocépticos, mas lê. Lê com desânimo mais um capítulo sobre o homem que busca o seu duplicado.

Um homem acorda de manhã e faz amor com a sua mulher. Será o único momento feliz do dia. A democracia fará dele um homem triste: este não votará, aquela não votará, aqueloutros não votarão. Lê as notícias sobre o crime anti-semita na Bélgica e revê sondagens. A rua está morta – mas como, se a praia está vazia? De volta à televisão, vê escolas também vazias. Não de alunos, de gente graúda, de gente de peito feito e de pêlo na venta. Antes de sair, liga para a terra e informa-se do estado das ruas por lá: cheias, mas para a peregrinação da Senhora da Saúde. Antes sete quilómetros andados por fé do que uns metros nos infernos da austeridade. Percebe-se.

Um homem veste uma camisa e sai. Quando chega ao seu local de voto, depara-se com uma fila de gente para a secção de hambúrgueres & couratos. Lá dentro, encontrará fila menor para votar, quase nada: duas pessoas, três. À entrada, uma criatura de peito feito, e cheio, escarnece de quem chega para votar. À saída lá continuará, escarnecendo, para quem a quiser ouvir. O pavilhão está vazio. Encarando um grande momento da vida democrática, o homem mingua. Sente-se sozinho e não sabe onde encontrar gente. Mas sabe que no limite um país de abstencionistas é uma democracia de um homem só. E nenhum homem só é boa companhia.

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