Em África “é preciso explicar como a democracia traz comida para a mesa”

A imagem de “pai da independência”, as políticas populistas e a falta de credibilidade da oposição são, para o activista dos direitos humanos zimbabweano Arthur Gwagwa, razões da longevidade política de Robert Mugabe.

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“É preciso repensar o modo como a democracia é apresentada, que tem sido neoliberal e eurocêntrico, ou americano” Enric Vives-Rubio

Se a democracia está a recuar em África é preciso repensar o modo como é apresentada, que “tem sido neoliberal e eurocêntrico, ou americano, não tendo em conta o contexto africano”, diz Arthur Gwagwa, coordenador internacional do Zimbabwe Human Rights Forum. O que deve ser feito? Explicar “como é que a democracia traz comida para a mesa”.

Gwagwa, 40 anos, coordenador de um fórum que agrupa duas dezenas de associações locais, trabalha também, a partir de Londres, na ligação entre organizações internacionais, como a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch, e grupos do Zimbabwe, onde se desloca com frequência.

Na semana passada participou, em Lisboa, na conferência “Europa e África, que futuro comum?”, promovida na Fundação Gulbenkian por organizações não-governamentais. E falou ao PÚBLICO da situação dos direitos humanos no seu país, que “ainda é má”, e de assuntos como a longevidade política de Robert Mugabe, 90 anos, ex-combatente pela independência, que deu forma a um regime repressivo e lidera o país há 34 anos.  

Como está o Zimbabwe em matéria de liberdades?
A violência organizada, a tortura, os sequestros diminuíram substancialmente mas a situação ainda é má no que diz respeito às liberdades civis, ao direito de reunião, associação, liberdade de expressão e participação política – como sabe houve eleições no ano passado, condenadas pela comunidade internacional como não tendo reflectido a vontade do povo. As pessoas não são livres de associarem, de expressarem os seus pontos de vista.

Mudou alguma coisa depois das eleições que elegeram Mugabe para um sétimo mandato?
Em matéria de liberdades civis a situação permanece a mesma, mas o Governo ficou um pouco menos tenso porque consolidou o seu poder, aliviou a ameaça à sua hegemonia.

Como é que se compreende a longevidade política de Mugabe? Mesmo tendo em conta as acusações de fraude eleitoral e a má situação económica – inflação, pobreza, desemprego – ele e o seu partido têm o apoio de muita gente.
Há muitas razões. Apresenta-se como o pai da independência, [como alguém] que tem os interesses do povo no coração. E quanto mais se ouve isso, mais há quem acabe por se sentir em dívida para com ele. Combinado com isso há a falta de credibilidade da oposição e a compra de votos com políticas populistas. As maiores áreas urbanas, onde há mais informação, votam pela oposição, mas nas zonas rurais as pessoas continuam a votar por Mugabe. E o Zimbabwe tem uma população predominantemente rural.

Mugabe beneficia ainda da herança da luta pela independência?
Sim. É lembrada a guerra pela independência e é dado a entender que votar na oposição significa o regresso à guerra. A memória da guerra está presente e muita gente considera que não há alternativa que não seja votar no partido do poder.

Políticas com a da “indigenização” [que determinou que 51% do capital das empresas fosse transferido para negros e levou à saída de muitos agricultores brancos do país] ajudam a explicar a manutenção de Mugabe no poder?
É uma das políticas populistas. Há muito que a questão da terra existe. O líder tomou consciência de que podia perder o poder para a oposição e decidiu pegar na terra, tirá-la dos agricultores brancos e dá-la aos negros, invocando o interesse nacional. Mas todos sabemos que a decisão não foi motivada por interesses nacionais mas políticos. A redistribuição é necessária, mas foi feita de forma caótica e para servir interesses políticos particulares.

E teve efeitos negativos na economia do país.
Sim. Mugabe acusa o Ocidente e as sanções internacionais pela situação do país, mas decisões soberanas do Zimbabwe – distribuição caótica de terra, envio de tropas para República Democrática do Congo e outras –, combinadas com corrupção tiveram mais impacto económico do que as sanções. Só que as pessoas começaram a ouvir falar de sanções e a atribuir os problemas às sanções.

Acham que a situação do país resulta de uma “conspiração” externa?
Mais nas zonas rurais, onde não há acesso a informação. Lamentavelmente, mesmo em áreas urbanas se encontram pessoas que acreditam nisso. Mas os factos contradizem esse argumento. 

Como entender, face às críticas internacionais, que Mugabe tenha agora sido escolhido para vice-presidente do conselho executivo da União Africana (UA)?
A escolha do Zimbabwe reflecte uma relação simbiótica entre o Zimbabwe e a região. O [poder no] Zimbabwe precisava da aceitação pela UA dos resultados da sua eleição e a reintegração internacional do Zimbabwe serve países desejosos de serem vistos como influentes, [mostra a sua importância]. Há uma segunda razão: quando se olha para África, ela é governada por um “clube de amigos” que colocam as relações [pessoais] à frente dos princípios na lógica de “Eu apoio-te hoje, tu apoias-me amanhã”. Protegem-se uns aos outros, no receio de um dia serem perseguidos pelo Tribunal Penal Internacional.

E há relações pessoais e históricas.
Sim, em muitos casos com raízes nas lutas de libertação, mas assentes também na corrupção. [Para a aceitação do regime do Zimbabwe] há uma combinação de factores. Um deles é a capacidade de Mugabe para manipular a região, a UA e SADC [Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral]. Essa manipulação assenta no facto de alguns líderes mais jovens não saberem o que fazer com a velha geração de líderes como Mugabe, de terem deferência por ele, de o deixarem fazer o que quer, porque a sociedade africana tem uma base patriarcal, respeitam-se os mais velhos. Há ainda outro motivo, malicioso: alguns países que se esforçam por ser competitivos, por terem melhores relações com a Europa e a América, põem Mugabe num pedestal e são muito espertos.

Que países?
Onde estão os fazendeiros brancos que tiveram de sair do Zimbabwe? Alguns na Nigéria, alguns na Zâmbia, alguns no Malawi, estão por toda a região. Dizem que Mugabe faz bem em expulsar os brancos mas assim que saem do Zimbabwe o que é que fazem? Dão-lhes boa terra, terra produtiva.

A UE aliviou as sanções a dirigentes do Zimbabwe mantendo-as apenas a Mugabe e à mulher. As principais sanções económicas são agora as dos EUA [a 113 pessoas e 70 entidades]. O que é melhor para os direitos humanos: acabar com elas ou mantê-las?
É uma questão difícil. A situação dos direitos humanos deve melhorar, independentemente do levantamento de sanções. É uma decisão de soberania. Os EUA têm de avaliar se as sanções são eficazes. E se não é altura de serem levantadas e de reconsiderarem outras maneiras de encorajar reformas.

Na sua opinião não são eficazes?
É difícil dizer. Muita gente diz que não são. A questão é saber que estratégia seguir, o que é também uma questão de difícil resposta. Nos EUA houve o mesmo debate sobre o Irão.

Se os americanos lhe perguntarem, o que lhes diz? Manter sanções? Adoptar outra estratégia?
Perguntaram, em Setembro, no Congresso. Como organização não temos uma opinião definida sobre as sanções, o que fazemos é procurar transmitir o sentimento do país. Começa a haver gente a dizer que Mugabe se esconde atrás das sanções e que levantando-as se veria o que apresenta como justificação para a ausência de reformas. Mas muito gente nada diz.

Em sua opinião há um retrocesso da democracia em África e não é altura para a Europa deixar o continente à mercê da influência chinesa – penso que se refere à falta de democracia e de direitos humanos. O que deve a Europa fazer para encorajar a democracia?
Repensar o modo como é apresentada, que tem sido neoliberal e eurocêntrico, ou americano, não tendo em conta o contexto africano. Penso que quando se diz democracia, democracia, democracia, sem explicar como isso melhora o dia-a-dia, muita gente não estará disposta a aceitá-la. É preciso fazer chegar de modo compreensível a mensagem às pessoas, principalmente às que vivem em zonas rurais

Explicando-lhes os benefícios?
Sim. Explicando como é que a democracia traz comida para a mesa, como é que a melhoria da situação dos direitos humanos melhora a educação dos filhos. Navi Pillay [alta-comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos] explicou essa relação quando visitou o Zimbabwe em 2012. Um dos exemplos que deu foi: se for permitido o fluxo da informação, isso fará com que um país esteja mais bem preparado para responder aos desastres, para planear melhor as respostas se houver seca, sem informação livre isso não é possível.

Trata-se de ligar os valores da democracia, direitos humanos e estado direito aos assuntos económicos e sociais que afectam às pessoas. Como é que isso se faz? Uma das formas é encorajando a cidadania, a participação, a democracia local, ligando os princípios democráticos à prestação de serviços, alimentação, abastecimento de água e bens.  

Deve haver uma agenda específica de direitos humanos para África? Há quem entenda que há prioridades, como o direito à vida e a cuidados de saúde, em detrimento de direitos como os dos homossexuais.
Não. Os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos estão reflectidos na Carta Africana [dos Direitos do Homem e dos Povos]. O que é preciso é contextualizá-los de modo a que as pessoas localmente os entendam. Direitos humanos são direitos humanos, são valores universais. Nas sociedades africanas agrárias, anteriores à chegada dos ocidentais, as pessoas associavam-se nos tempos de dificuldades, participavam nas decisões políticas, escolhendo chefes e outras. O que acho que está a acontecer é que por parecer que a mensagem vem do Ocidente, há resistência, não das pessoas mas dos líderes.

Na conferência lançou a questão da sustentabilidade do crescimento num contexto de ausência de direitos humanos. Qual é a sua resposta?
Pode haver crescimento sem direitos humanos. Vemos isso, por exemplo, na Etiópia. A questão é se é sustentável no longo prazo. Um país onde há grandes edifícios, boas estradas mas as pessoas não são felizes, não se podem exprimir, isso não é desenvolvimento, não é sustentável.

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