Presidente e oposição não cedem e a Ucrânia afunda-se cada vez mais na violência

Balanço oficial mais recente dá conta de 26 mortos, entre os quais 15 civis, dez polícias e um jornalista. União Europeia discute aplicação de sanções aos responsáveis políticos ucranianos.

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As horas vão passando e arrastam a Ucrânia para um campo de batalha sem fim à vista, após três meses de protestos relativamente pacíficos. Desde a manhã de terça-feira já morreram 26 pessoas, de acordo com as actualizações permanentes do Ministério do Interior. O Presidente do país, Viktor Ianukovich, acusa os líderes da oposição de terem incitado uma insurreição e garante que todos eles vão prestar contas perante a Justiça.

O centro de Kiev, ocupado por uma massa humana que contesta a legitimidade de Ianukovitch para se manter no poder, foi também o epicentro do "dia do Juízo Final", ou da "batalha de Kiev". Um dia que ameaça prolongar-se por muito mais do que 24 horas e alargar-se muito além da capital – os relatos de ocupação de edifícios públicos e de depósitos de armas em Lviv, no extremo Oeste do país, indicam isso mesmo.

O balanço de vítimas foi actualizado nesta quarta-feira pelo Ministério do Interior: pelo menos 26 mortos e 241 feridos, numa contagem que as próprias autoridades reconhecem estar longe do fim. Entre as vítimas mortais há 15 civis, dez polícias e um jornalista, do diário ucraniano Vesti. O mesmo ministério anunciou que a polícia deteve 59 pessoas até ao fim da manhã.

Durante a noite, a catedral de São Miguel, no centro de Kiev, serviu de abrigo a muitos manifestantes. Vários voluntários prestaram cuidados de saúde aos feridos, de acordo com a Euronews, e alguns padres conseguiram arranjar forma de conduzir os manifestantes da Praça da Independência até à catedral.

Não há qualquer indicação de que a violência poderá cessar nas próximas horas. Após uma reunião com os principais líderes da oposição, o Presidente Viktor Ianukovich acusou-os de terem "ultrapassado os limites", por terem "apelado à luta armada". Foi decretado dia de luto nacional na quinta-feira em homenagem às vítimas dos confrontos, anunciou Ianukovich.

Num comunicado publicado nesta quarta-feira no site da Presidência, Viktor Ianukovich disse que a operação policial foi lançada para impedir a tentativa dos seus opositores de "tomarem o poder através de fogo posto e de homicídios".

O Presidente ucraniano considera que deu todas as oportunidades à oposição para dialogar, mas que tem sido pressionado pelos seus conselheiros a assumir uma posição mais dura. "Sem qualquer mandato do povo, de forma ilegal e em violação da Constituição da Ucrânia, estes políticos – se é que posso usar este termo – recorreram a massacres, ao fogo posto e a homicídios para tentarem tomar o poder."

No final da reunião com os líderes da oposição, Ianukovich atribuiu toda a responsabilidade à oposição, mas disse que "não é tarde de mais para parar este conflito": "Para ser sincero, alguns dos meus conselheiros estão a tentar levar-me a adoptar posições mais duras, para usar a força. Mas eu sempre considerei o uso da força um erro. Há meios melhores e mais eficazes – como encontrar uma linguagem comum. Tenho pedido com insistência para que as pessoas se abstenham de cometer acções radicais. Mas elas não me ouviram. Repito: ainda não é tarde de mais para nos ouvirmos uns aos outros. Ainda não é tarde de mais para parar este conflito."

Quanto aos líderes da oposição, o Presidente ucraniano foi claro: "Eles ultrapassaram os limites quando apelaram às pessoas que pegassem em armas. Quem viola a lei deve ser levado a tribunal, que irá determinar a punição a aplicar. Não é um capricho pessoal, é o meu dever enquanto garante da Constituição."

Tal como o Presidente, a oposição saiu do encontro como entrou. "O Presidente pediu-nos que nos rendêssemos. Mas nós vamos ficar aqui com os manifestantes", disse um dos líderes da oposição, Arseni Iatseniouk (do partido da antiga primeira-ministra Iulia Timochenko), ao Kanal 5 ucraniano.

Vitali Klitschko, antigo campeão do mundo de pugilismo e líder do partido Udar (Murro), acusou o Governo de ter "declarado uma guerra contra o seu próprio povo". Mais tarde, revelou que o Presidente Ianukovitch quer voltar a reunir-se com os principais rostos da oposição ainda nesta quarta-feira, numa reunião em que já confirmou a sua presença.

Em Lviv, a maior cidade da parte ocidental do país, os manifestantes invadiram as instalações da polícia, segundo a BBC, que cita agências locais. Os activistas afirmaram ter libertado todos aqueles que se encontravam detidos, acrescentam.

Grupos de manifestantes ocuparam a direcção da polícia, a sede dos serviços de segurança e a procuradoria em Ivano-Frankivsk, também na região ocidental.

EUA pedem contenção, Rússia culpa Ocidente, UE fala em sanções
Numa série de tweets publicados nas últimas horas, o Departamento de Estado norte-americano lançou apelos ao Presidente ucraniano para que ponha fim à violência: "Apelamos ao Presidente Ianukovitch e ao Governo ucraniano que retome o diálogo com a oposição num caminho pacífico."

O vice-presidente dos EUA, Joe Biden, telefonou a Ianukovitch para lhe manifestar a sua "grande preocupação com a crise nas ruas de Kiev". Através de Biden, a Casa Branca apelou ao Presidente ucraniano que "retire as forças governamentais e que exerça o máximo de contenção".

O vice-presidente norte-americano – prossegue o texto publicado no site da embaixada norte-americana em Kiev – "deixou claro que os Estados Unidos condenam a violência de ambos os lados, mas o Governo tem especiais responsabilidades na pacificação da situação".

Também o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, falou com o Presidente ucraniano, com quem discutiu "a violência inaceitável nas ruas de Kiev". <_o3a_p>

"Apelamos ao Presidente Ianukovitch e ao Governo ucraniano para que pacifique a situação imediatamente, e que retome o diálogo com a oposição. As profundas divisões na Ucrânia não serão sanadas com o derramamento de mais sangue inocente", lê-se no comunicado assinado pela porta-voz do Departamento de Estado, Jen Psaki.

Do lado da Rússia chegam condenações ao envolvimento dos países ocidentais na situação na Ucrânia, em especial os EUA e os Estados-membros da União Europeia, que Moscovo acusa de terem "fechado os olhos aos actos agressivos das forças radicais na Ucrânia". Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo denuncia o que considera ser uma "tentativa de golpe de Estado" protagonizada pela oposição ao Presidente Ianukovitch e afirma que a Rússia irá usar "toda a sua influência" para "levar a paz e a calma" à Ucrânia.

O presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, defendeu na manhã desta quarta-feira que os líderes da União Europeia devem aprovar "urgentemente medidas direccionadas aos responsáveis pela violência na Ucrânia".

Foi convocada uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE para quinta-feira, durante a qual "todas as opções serão exploradas", afirmou a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, deixando antever a possibilidade de aplicar sanções.

O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, afirmou que "as autoridades ucranianas estão à beira de perder qualquer legitimidade" e caracterizou a situação no país como "uma tragédia em desenvolvimento". "As actuais autoridades da Ucrânia têm de permitir a formação de um Governo de transição, de unidade nacional, e a realização de eleições antecipadas, para que as autoridades nacionais recuperem a sua legitimidade", lê-se num comunicado publicado no site do Parlamento Europeu.

Da Polónia chegou o aviso mais sério. O primeiro-ministro, Donald Tusk, afirmou que a Ucrânia arrisca-se a mergulhar numa "guerra civil", com consequências para a estabilidade de toda a região, e disse que irá pressionar a União Europeia a impor sanções ao Governo ucraniano.

O ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Radoslaw Sikorski, anunciou, através do Twitter, que se vai deslocar "brevemente" a Kiev, a pedido de Ashton.

Nesta quarta-feira chegou também a ameaça francesa da aplicação de "sanções individuais". O ministro dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, anunciou que irá reunir-se com as autoridades alemãs e disse que é "provável" que sejam aprovadas sanções dirigidas a responsáveis ucranianos.

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Frank-Walter Steinmeier, acusou o Presidente ucraniano de se recusar a manter "discussões sérias" com a oposição. "As manobras dilatórias do Presidente Ianukovitch custaram caro à Ucrânia. A sua recusa em manter discussões sérias para uma solução pacífica do conflito e para uma reforma constitucional é um grande erro", disse o ministro alemão.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Carl Bildt, foi também categórico na atribuição de culpas, numa mensagem publicada na sua conta no Twitter: "Temos de ser claros: a responsabilidade das mortes e da violência é do Presidente Ianukovitch. Ele tem sangue nas mãos."

Fim da relativa contenção
A onda de violência em Kiev começou na manhã de terça-feira, quando milhares de manifestantes tentaram furar o cordão policial para chegarem mais perto do Parlamento, onde os deputados dos três partidos da oposição pretendiam discutir uma alteração à Constituição que tem como objectivo reverter o carácter presidencialista do regime político ucraniano.

Os manifestantes lançaram pedras e cocktails molotov e a polícia anti-motim respondeu com extrema violência, primeiro com balas de borracha, mas também, segundo algumas testemunhas, com munições reais. A partir desse momento tornou-se impossível voltar atrás – as ruas da capital foram somando confrontos ao longo do dia, até que as forças governamentais entraram na Praça da Independência (o símbolo da oposição nos últimos meses) e carregaram sobre os milhares de manifestantes que lá se encontravam.

Os protestos começaram em Novembro, quando o Governo nomeado pelo Presidente Viktor Ianukovitch resolveu afastar-se das negociações com vista à assinatura de um acordo de cooperação com a União Europeia, para se aproximar do bloco económico que a Rússia está a construir com algumas das antigas repúblicas soviéticas.

O país ficou dividido – a ocidente reclama-se o regresso ao caminho da integração na União Europeia; a oriente, mais propriamente na zona noroeste do país, há uma maior proximidade económica com a Rússia, ditada em muito pela proximidade geográfica, que facilita as trocas comerciais.

No final de Janeiro, a pressão de Moscovo para que o Governo ucraniano pusesse fim à contestação popular tornou-se mais evidente, com o aperto dos controlos fronteiriços e a suspensão de uma linha de crédito superior a 11 mil milhões de euros, entretanto desbloqueada – na segunda-feira, a Rússia anunciou a transferência de cerca de 1,5 mil milhões de euros para os cofres da Ucrânia.

Mas nessa altura, em finais de Janeiro, Sergei Glazev, um conselheiro de Putin distinguido pelo Kremlin pelo seu papel no sucesso da reaproximação da Ucrânia à Rússia – ou no falhanço da aproximação da Ucrânia à União Europeia –, deixou bem claro o descontentamento de Moscovo, em declarações à revista da empresa Gazprom: "O Presidente [da Ucrânia] tem uma opção. Ou defende o Estado ucraniano e põe fim à insurreição, ou arrisca-se a perder o poder. Se isso acontecer, a Ucrânia enfrentará o caos crescente e um conflito interno sem fim à vista."

Um conflito com divisões em todo o lado
Para além das divisões entre o Presidente Ianukovitch e a oposição, a crise na Ucrânia é agravada por divisões entre a própria oposição; entre o bloco constituído pelos EUA e pela União Europeia, de um lado, e a Rússia, do outro; e entre os EUA e a União Europeia, que não se entendem quanto à melhor forma de agir.

Entre a oposição têm convivido personalidades como Vitali Klitschko, o antigo campeão mundial de boxe que se tornou num dos principais rostos dos protestos – e que conta com o apoio da chanceler alemã, Angela Merkel –, e grupos de extrema-direita.

As diferenças entre Washington e Bruxelas em relação à situação na Ucrânia ficaram também patentes numa conversa entre a vice-secretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland, e o embaixador dos EUA em Kiev, Geoffrey Pyatt. Nessa conversa, divulgada há duas semanas, Nuland descarta Vitali Klitschko como uma escolha para o Governo de Kiev e revela o apoio norte-americano a Arseni Iatseniuk, líder do partido da antiga primeira-ministra Iulia Timochenko. Para além disso, a linguagem escolhida pela vice-secretária de Estado para se referir à União Europeia motivou mal-estar nos dois lados do Atlântico.

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