Cérebro de doente famoso dá novas pistas sobre a memória humana

A análise póstuma do cérebro de H.M., doente cujo caso inaugurou literalmente o estudo moderno das bases neurológicas da memória, poderá levar a reavaliar a visão actualmente aceite pelos especialistas.

Foto
O cérebro congelado de H.M. durante a dissecação Diego Mariscal

Henry Molaison, mais conhecido como H.M., foi um dos mais famosos e mais estudados doentes da história das neurociências modernas. Mas até à sua morte, em 2008, os cientistas só tinham podido estudar as suas lesões cerebrais “do lado de fora”, nomeadamente através de imagens de ressonância magnética. Agora, uma equipa de cientistas dissecou postumamente o cérebro deste homem que, a seguir a uma cirurgia, perdera totalmente a capacidade de formar novas memórias. Os resultados, que contradizem em parte o que as anteriores visualizações, não invasivas, do seu cérebro sugeriam, foram publicados terça-feira na revista Nature Communications.

“Os conhecimentos científicos sobre a forma como as funções da memória estão organizadas no cérebro humano têm a sua origem no caso [de H.M.]”, escrevem Jacopo Annese, da Universidade da Califórnia, e colegas, no seu artigo.

Henry Molaison, explicam ainda, conhecido na literatura médica como o “doente H.M.”, começou a sofrer, por razões incertas, pequenas crises epilépticas quando tinha dez anos. As crises tornaram-se muito mais graves aos 15 anos, comprometendo a sua saúde e o seu desempenho escolar e social. Ao ponto de em 1953, quando tinha 27 anos – e que a medicação anticonvulsiva em altas doses não funcionava –, este jovem norte-americano ter feito uma cirurgia cerebral na esperança de que os seus sintomas se iriam atenuar.

De facto, houve uma certa melhoria quando os neurocirurgiões removeram uma zona do cérebro de H.M. – uma parte dos chamados "lobos temporais mediais", incluindo uma pequena estrutura chamada "hipocampo" –, mas ao mesmo tempo a operação teve um impacto imprevisto e infeliz. É que, apesar de as suas faculdades intelectuais e perceptuais, bem como a sua personalidade, não se terem aparentemente alterado, a partir daí H.M. nunca voltou a conseguir criar e reter novas memórias.

“Por exemplo, H.M. era capaz de se envolver numa grande conversa, mas poucos minutos mais tarde já não se lembrava nem desse intercâmbio, nem do seu interlocutor”, escrevem ainda os cientistas.

“Até ao fim da vida, a pureza e a gravidade da incapacidade mnemónica de H.M., aliadas à sua boa vontade para participar em testes sem fim, tornaram o seu caso mais influente do que qualquer outro”, lê-se num comunicado da Universidade da Califórnia. “Foi o catalisador de 50 anos de descobertas científicas e milhares de publicações (…) e forneceu as primeiras provas sólidas de que o hipocampo estava envolvido na formação das memórias.”

Mas até a equipa de Annese ter realizado o actual trabalho não se sabia ao certo qual era a extensão do tecido que fora removido do cérebro de H.M. nos anos 1950. Ora, para consolidar os resultados, era preciso visualizar esse cérebro com uma maior resolução do que a que permitem as imagens cerebrais não invasivas. Por isso, em 2009, estes cientistas dissecaram o cérebro de H.M., congelando-o e cortando-o em 2401 finas fatias. Durante o corte iam recolhendo imagens digitais de cada fatia, que seriam reunidas num modelo 3D, à escala microscópica, da totalidade do cérebro do famoso doente. “O nosso objectivo era criar esse modelo 3D para podermos revisitar, por dissecação virtual, o procedimento cirúrgico original (…) e verificar anatomicamente qual fora a lesão original, bem como o estado patológico dos tecidos envolventes”, diz Annese, citado no mesmo comunicado.

Imprecisão cirúrgica
Os cientistas defrontaram-se então com duas novidades. Por um lado, e ao contrário do que sempre se pensara, H.M. ainda possuía uma parte substancial do seu hipocampo. Por outro, existia uma pequena lesão bem delimitada, ao nível do lobo frontal esquerdo de H.M., que afectava o córtex dito "pré-frontal", envolvido em particular nas tomadas de decisão.

Os autores não especulam sobre as eventuais consequências desta pequena lesão, mas segundo eles é provável que tenha sido causada pela própria técnica cirúrgica, que envolveu a realização de dois pequenos furos no crânio, por cima das órbitas dos olhos, seguida do afastamento mecânico dos lobos frontais, de forma a atingir zonas mais profundas do cérebro, onde estavam situados os alvos da cirurgia – alvos cuja ablação implicou o uso de bisturis e de tubos de sucção.

Quanto ao facto de o hipocampo não ter sido totalmente removido, esse resultado é “potencialmente muito significativo”, afirmam. “Durante décadas, pensou-se que a principal área lesionada responsável pela amnésia de H.M. era o hipocampo”, explica Annese. “Porém, os novos resultados mostram que uma porção substancial do hipocampo de H.M. poderá ter sido poupada pela operação. E que, pelo contrário, o córtex entorinal, placa giratória de toda a informação que entra no hipocampo, foi quase totalmente destruído. Isso sugere que o córtex entorinal poderá ser mais importante para os défices de memória de H.M. do que se pensava. Aliás, é essa mesma região que parece ser a mais fortemente afectada durante as fases mais precoces da Alzheimer.” 

A equipa construiu entretanto a partir das fatias cerebrais um atlas online do cérebro de H.M. ao nível celular – com um nível de pormenor sem precedente – e tornou-o acessível à comunidade científica, graças a uma navegação de tipo Google Maps. Mais informações aqui.
 
 
 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar