Doze anos é muito tempo, dr. Rui Rio

Rui Rio deixa hoje a Câmara do Porto, onde passou os últimos 12 anos. Foi o presidente mais longevo no município desde a era em que o Porto liberal e radical impôs o liberalismo ao país. Não deixará para a posteridade uma aura de revolução e de modernidade. Não deixará ideias, nem projectos. Não deixará obras emblemáticas e perenes como o Metro, não deixará um lastro cosmopolita como o do Porto Capital Europeia da Cultura, não deixará a cidade inscrita na lista do Património Mundial como o socialista Fernando Gomes, que governou a Câmara nos anos 90. Mas se não deixa obra, Rio também não deixou dívida. O que não é coisa pouca nos dias que correm.

Se há algum sinal político que é obrigatório exaltar no dia em que Rui Rio deixa os paços do concelho é essa visão premonitória da catástrofe da dívida e do défice. Não foi um acaso. O reconhecimento da urgência de uma dieta financeira após década e meia de excesso aconteceu logo na sua primeira campanha eleitoral. Rio constatou o problema, mas esse mérito também o teve Durão Barroso ou a sua ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite. Mas enquanto uns se lamuriavam sobre o país de tanga, Rui Rio atacou de frente o problema. Congelou investimentos, cortou drasticamente nos apoios, reorganizou de alto a baixo os serviços municipais, combateu implacavelmente o laxismo nos serviços. Hoje, a Câmara do Porto é um exemplo para o país. Se esse exemplo tivesse sido repetido em tempo certo, certamente não estaríamos a discutir a iminência de um segundo resgate.

É esta aura de sobriedade e de rigor que concedem a Rui Rio a imagem de homem providencial. Os portugueses estão fartos de políticos palavrosos, de vendedores de ilusões, de traficantes de interesses, de homens públicos que tremem à primeira ameaça e cedem à segunda pressão. Rio não é, de todo, assim. O que é uma vantagem. Mas, por falta de tempero, é também o seu principal defeito. Na gestão de um município, mesmo com a dimensão do Porto, esse defeito que torna a obstinação em cegueira, a convicção em arrogância, e assertividade em despotismo é facilmente diluível. No governo de um país, muito dificilmente o será. O rigor e a inflexibilidade com que geriu as contas e puniu os desmandos na Câmara perderam parte do seu sentido e valor com a sua incapacidade de aceitar o debate e a divergência, com a sua impúdica propensão para se fazer promover em dezenas de fotografias no boletim municipal, com o seu injustificável aval aos ataques, por vezes fulanizados, a críticos e opositores nos painéis publicitários da Câmara. 

Hoje já poucos se lembram dos dias em que Rui Rio queria erradicar os arrumadores de automóveis - missão que inapelavelmente falhou; dos tempos em que dizia querer tratar dos pobres para evitar que os pobres e excluídos tratassem de “nós”; da política de terra queimada que decretou em relação a todas as heranças dos seus antecessores, fossem boas ou más: da Porto Capital da Cultura, do Plano de Pormenor das Antas, das negociações para a construção do Parque da Cidade; da sua deliberada e ostensiva guerra a todos os sectores da Cultura, muitas vezes em clara retaliação aos que desde o primeiro momento vituperaram o seu primarismo argumentativo sobre as artes; de todas as direcções de todos os jornais, sujeitas a pressões que chegaram a tentativas de impor aos accionistas a sua demissão; da condenação do sistema judicial que se arrogava o direito de interpretar as leis de forma diferente da sua.

Com o tempo, Rui Rio tornou-se mais aberto, mais plural, deixou de se limitar pelas fronteiras da Circunvalação, começou a falar ao país vendo que o país estava disposto a ouvi-lo. O seu terceiro mandato foi muito melhor que o segundo e o segundo muito melhor que o primeiro. No processo de aprendizagem das vitórias sobre Fernando Gomes, sobre Francisco Assis e sobre Elisa Ferreira ganhou segurança e confiança. Deixou de ser um autarca tão acossado, perseguido pelos jornalistas, pelos juízes, por Pinto da Costa e pelos perigosos actores culturais. Ganhou confiança, pôde descer à rua. Até o seu chefe de gabinete, um ex-director do Comércio do Porto, meio cardeal Richelieu, meio Rasputin, foi melhorando com o tempo.

Rio deixa ao fim de 12 anos a casa arrumada, as contas em dia e um enorme vazio entre a autarquia e uma grande maioria dos portuenses. Deixa os bairros municipais limpos e compostos, mas o Bolhão decrépito. Deixa as indemnizações pela sua megalomania no Parque da Cidade pagas, mas jamais conseguirá explicar o fracasso na gestão do Teatro Rivoli, que Filipe Lá Féria usou e descartou a seu bel-prazer. O Porto que se modernizou, o Porto da Universidade, de Serralves, da Casa da Música, das Galerias de Paris, do Palácio da Bolsa ou do Estádio do Dragão fez-se nas suas costas ou contra ele. A cidade moderna e aberta ao mundo, o Porto culto, irreverente e cosmopolita jamais se reviu no seu conceito de “cidade de carneirinhos” que na década de 1990 Fernando Gomes tanto combateu.

Rui Rio sai e à sua espera está provavelmente uma carreira mais alta na política. A cidade que agora deixa tem sem dúvida muito que lhe agradecer. A vitória de Rui Moreira exprime, em parte, um tributo dos portuenses à sua gestão. Mas presente-se também no ar uma brisa de frescura. Uma janela aberta. Doze anos de governação defensiva, sem imaginação e sem brilho, sem pelouro da Cultura e sem um discurso de ousadia e modernidade são muitos anos. Rio sai com um relatório e contas brilhante e exemplar. Sai também sob o clima de uma apagada e vil tristeza que o impedem de inscrever o seu nome entre as glórias do poder municipal portuense. Bendita lei da limitação dos mandatos.

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