O novo proletariado já nasceu burguês

Depois de deixar a aldeia, não há volta atrás. Por muito duro que seja o trabalho na fábrica, o regresso é uma derrota. A população rural foi encorajada a migrar para as cidades, mas continua a ser discriminada no acesso à educação, à saúde e à habitação. A mobilidade social é possível, mas não é fácil

Fábrica têxtil em Suining, na província de Sichuan
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Fábrica têxtil em Suining, na província de Sichuan Stringer/Reuters
Trabalhadores migrantes na estação de Dongguan Leste, no Delta do Rio das Pérolas
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Trabalhadores migrantes na estação de Dongguan Leste, no Delta do Rio das Pérolas Bobby Yip/Reuters
Dormitórios para os trabalhadores de uma fábrica de sapatos em Shenzhen
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Dormitórios para os trabalhadores de uma fábrica de sapatos em Shenzhen Carlos Barria/Reuters

A limusina preta Audi A8 parou à porta do meu hotel em Shenzhen. O condutor de fato e óculos escuros veio abrir a porta de trás. Sentei-me ao lado de Amy Yan, uma jovem alta e atraente, de saia-casaco, depois de ela me ter dado um salvo-conduto onde se lia VIP.

Deslizámos em direcção ao quartel-general. Na portagem da auto-estrada, havia filas de carros nas várias entradas abertas com sinal verde. Nós passámos, sem parar, pela que estava fechada com sinal vermelho.

Já no distrito de Longhua, nos arredores de Shenzhen, percorremos vários quilómetros de estrada junto aos muros altos, encimados por arame farpado, da Foxconn. Voltámos à direita para entrar no complexo contíguo, igualmente fechado a pessoas estranhas, da Huawei. No interior, cruzámos todos os checkpoints sem parar. Atravessámos áreas residenciais, restaurantes e cafés, um ginásio, uma piscina, um hotel e um hospital. O motorista voltou a abrir a porta quando chegámos ao edifício da exposição de produtos de telecomunicações. Esperavam-nos.“Uma em cada três pessoas no mundo usa produtos Huawei”, disse Vic Guyang, um dos porta-vozes da empresa, pouco depois de termos entrado nas imensas galerias da exposição. Tudo o que de mais importante a Huawei alguma vez produziu está ali apresentado e explicado, com painéis electrónicos, simulações, maquetes e gráficos cheios de monitores, botões e luzes. Telemóveis, smartphones “muito superiores ao iPhone”, tablets, routers, modems, gateways, terminais wireless, antenas, sistemas de vigilância, sistemas de comunicação remota e videoconferência para bancos, escolas, hospitais, governos municipais.Neste momento, a Huawei Technologies Co Ltd é o maior fabricante mundial de equipamentos de telecomunicações, depois de ter ultrapassado a Sony-Eriksson. Fornece 45 operadoras mundiais de telecomunicações (entre as quais a TMN, Vodafone e Optimus, em Portugal), que representam 80% do mercado. Tem mais de 140 mil empregados, centros de investigação e desenvolvimento nos EUA, Alemanha, Suécia, Índia, Rússia e Turquia, além da China, nos quais investiu, em 2011, quase 4 mil milhões de dólares, número sensivelmente equivalente ao dos lucros obtidos pela empresa no ano anterior.É uma das maiores e mais bem-sucedidas empresas da China e do mundo. Tudo isto continuando a ser relativamente desconhecida, como marca.A explicação, segundo os responsáveis pelo departamento de Relações Públicas (onde trabalham mais de 30 pessoas, em Shenzhen), é que a empresa se tem concentrado, até aqui, em produtos dirigidos a outras empresas, ou instituições, e não aos consumidores finais. Só recentemente a Huawei se tem dedicado aos telemóveis e tablets. Daí a marca não ser muito conhecida, apesar de ser usada por tanta gente no mundo inteiro.No esforço por obter reconhecimento, a Huawei tenta imputar uma filosofia a toda a sua actividade. A Apple, por exemplo, tem valores facilmente identificáveis — o design dos produtos, a facilidade de utilização, a sua vocação para as áreas profissionais mais criativas. Daí ser uma das marcas mais reconhecíveis no mundo. Mas a Huawei tem o quê?Como toda a gente, e todas as instituições, tem uma história, um progenitor, uma pátria. E isso, fatalmente, define a sua personalidade. A Huawei nasceu na China em 1987, fundada por um engenheiro oficial do Exército de Libertação Popular, e iniciou a sua actividade no mundo rural. Semelhanças com a Apple?Ter nascido no campo marcou para sempre o carácter da empresa. Eric, ajudado por uma série de técnicos, explica-me o funcionamento das várias estações de telecomunicações concebidas para funcionar em zonas onde o abastecimento eléctrico é irregular, onde os terminais de recepção são rudimentares e até onde há problemas com a chuva e o vento, ou mesmo os ratos, que roem os cabos.Ter desenvolvido esse tipo de equipamentos e soluções dá agora vantagem à Huawei nos mercados de países pequenos ou pobres, quer se trate de comunidades pouco populosas da Escandinávia, quer das regiões isoladas e sem infra-estruturas de África.É um valor que pode ser associado à marca, e divulgado, mas não deixa de ter um carácter dúbio: ao ser a marca de telecomunicações dos pequeninos e dos pobres, surge também aos olhos de muitos como uma etiqueta subversiva. Principalmente por se ter tornado rica e poderosa. No fundo, o problema de imagem da própria China.Eric mostra-me os sistemas de câmaras de vigilância para cidades, os planos de armazenamento e processamento de informação, monitorização, comunicações e controlo electrónico para governos e bancos. E adivinha o que estou a pensar. “Essas perguntas ficam para mais tarde”, diz ele. “Roland Sladek explicará tudo.”

Uma comissão do Congresso dos EUA acabara de emitir um parecer segundo o qual a Huawei não era uma empresa de confiança, porque podia estar a ser usada para actividades de espionagem pelo Governo chinês. “A China tem os meios, a oportunidade e o motivo para usar as empresas de telecomunicações com propósitos maliciosos”, diz o relatório da comissão da Câmara dos Representantes. “Com base na informação disponível, classificada e não-classificada, concluímos que não se pode confiar que a Huawei e a ZTE estejam livres da influência governamental, e portanto constituem uma ameaça à segurança dos EUA.” Segundo os investigadores americanos, os equipamentos Huawei podem ser usados para interceptar comunicações, ouvir conversas ou aceder a informação secreta. Qualquer aparelho Huawei, disse ainda um comentador americano, pode ter um dispositivo que permite ser desligado perante uma ordem do Governo central chinês. Em caso de uma guerra, Pequim poderia bloquear as comunicações em todo o mundo, ou num determinado país ou região. Todas estas suspeitas e acusações alucinadas são possíveis porque a Huawei tem uma vulnerabilidade radical: como tudo na China, não se sabe a quem pertence.

De novo no Audi A8, avançámos para a zona da administração e direcção. Jardins, avenidas com árvores, um lago, casas luxuosas, com paredes de xisto. Entrámos no Centro de Educação e Treino, um edifício ultramoderno, com enormes átrios em vidro, mármore e madeira, jardins interiores, salas de aula com ecrãs enormes nas paredes, uma cantina colossal e quase luxuosa. Era isto o miserável e sinistro mundo industrial da China?
Num pequeno restaurante de Luohu, a zona de Shenzhen mais próxima da fronteira com Hong Kong, Sheng Long e Xiang Ning conversavam sobre o trabalho. “Não devia ter mudado de emprego”, admitia Xiang. “Agora quero voltar e é impossível.”

Sheng consolava-o: “Eu estou bem pior. Ando há meses à espera de um lugar onde ganhe mais do que a tipografia, mas não surge nada.”

Xiang trabalhou numa fábrica da Huawei, e agora é operário da Foxconn, a gigantesca empresa vizinha, de origem taiwanesa. É da província de Hebei e vive há seis anos em Shenzhen. Sheng é de Anhui, de onde acaba de regressar, após umas curtas férias (vários feriados seguidos chamados a Semana de Ouro). Conheci Sheng no autocarro, na viagem desde Linquan, em Anhui. É um rapaz magro e tímido, de enormes óculos e dentes negros. Arranjou emprego na tipografia através de uma amiga da namorada, uma rapariga da terra dele que trabalha numa fábrica de sapatos desportivos em Dongguan.A tipografia raramente permite fazer horas extraordinárias. Oito rapazes fechados numa cave malcheirosa trabalham dez horas por dia com um salário mensal de três mil yuan (370 euros). Folga um dia por semana e feriados. Sem alojamento.Na Foxconn o salário é um pouco mais alto, mas a grande vantagem não é essa. São as horas extraordinárias, que permitem fazer outro tanto, ou mais. Ou melhor, permitiam. Agora, com a crise internacional, há menos encomendas e as horas extra são só para os amigos dos encarregados. Os trabalhadores sentem-se defraudados. Muitos deles, foi pela possibilidade de trabalharem 16 horas por dia que entraram na empresa. O esforço era enorme, mas permitia um salário quase equivalente a mil euros.Mas não é por isso que entraram em greve, explicou Xiang. É por causa da discriminação. “Uns têm direito a horas extraordinárias, outros não.”
Eu estava pasmado. Nada daquilo vinha nas notícias. “Os trabalhadores da Foxconn estão em greve?”“Nem todos. Mas tem havido protestos dentro da fábrica.”

O complexo da Foxconn em Longhua, Shenzhen, ao lado do da Huawei, integra várias fábricas, com um total de mais de 350 mil trabalhadores. O recinto é cercado com muros altos e vigiado por guardas armados. Na sua maioria, os trabalhadores vivem lá dentro. Utilizam os refeitórios, os supermercados, as lojas, bem como o ginásio, piscinas ou o hospital. É uma autêntica cidade, auto-suficiente, e estranhos não podem entrar. O controlo é rigoroso.Na Foxconn são produzidos a quase totalidade dos iPhone e outros equipamentos da Apple, mas também os telemóveis Nokia, Sony e Eriksson, os computadores Dell e de muitas outras marcas. Os próprios telemóveis Huawei são fabricados lá, embora vários componentes de equipamentos montados na Foxconn sejam fabricados pela Huawei. A colaboração é intensa entre os dois vizinhos.Para Xiang, que trabalhou nas linhas de montagem da Huawei antes de entrar para a Foxconn, não há muitas diferenças. “Na Foxconn, o trabalho é mais rápido e mais repetitivo. Ganhava-se mais, por causa das horas extraordinárias, mas os trabalhadores protestam mais. Na Huawei, as pessoas gostam da empresa.”

Na Foxconn, uma das formas de protesto é o suicídio. Chegou a assumir números tão elevados (dezenas por ano), que a empresa mandou erguer redes sob as janelas das torres-dormitório. No entanto, os salários na Foxconn, a par com os da Huawei, são dos mais elevados da região. “A maior parte das pessoas ali consegue ter um nível de vida como nunca teve, nem viu ninguém ter na família, nas aldeias de onde vêm”, disse Xiang. “Todos têm telemóvel, compram roupa e enviam dinheiro todos os meses para a família. O problema não é o dinheiro. É não se saber o que fazer à vida. Só trabalho, mais nada.”

Longe das famílias e dos ambientes culturais onde sempre viveram, os trabalhadores de Shenzhen vivem num vazio difícil de preencher. A cidade nada mais tem para oferecer além dos gigantescos centros comerciais. Eles são o entretenimento, o espectáculo, a realização pessoal e o sonho. São a cultura, para populações cujo único desígnio é abandonar o círculo da pobreza. Estar aqui, na cidade, é viver. Seja lá o que isso signifique. É preciso chegar a este patamar. O resto não é urgente.

Saímos do restaurante e avançámos por uma das ruas paralelas ao enorme mercado coberto de Luohu, o grande centro da contrafacção e produtos de luxo falsos, à mistura com massagens, salas de chá e balcões de electrónica. À volta cintilam arranha-céus de cem andares, mas aqui predominam prédios velhos, de 20 andares, que albergam escritórios manhosos e hotéis, muitos hotéis com nomes chineses e sem qualquer anúncio à entrada.“Miss, miss”, diziam mulheres que se aproximavam, ao ver três homens sozinhos. “Venham! Lindas misses. Venham ver e escolham a vossa preferida. Custa 300 yuan (37 euros). Custa 200…” São geralmente mulheres de meia-idade, ou homens, que vêm tentar angariar os clientes para os inúmeros pequenos bordéis clandestinos da zona. Mas muitas vezes são as próprias prostitutas que se aproximam, fornecendo logo dados precisos, acompanhados de ilustração gestual ou onomatopaica, sobre os serviços que prestam.Dias mais tarde, decidi voltar ali ao cair da noite, e aceitar a sugestão de um homem sem uma perna que me abordou na rua com a fotografia de um quarto de hotel. Segui-o por ruelas atafulhadas de mercados de legumes, oficinas, salas de massagem e bordéis, até um hotel decadente e fétido no 17.º andar de um prédio degradado. Dormi lá, num quarto minúsculo e interior, por cerca de três euros. Paguei, recolhi ao meu aposento, e logo depois começou a dança. Durante toda a noite, mulheres de idades variadas vieram bater à minha porta oferecendo sexo. O preço oscilava entre 500 e 100 yuan (12 euros), sem contar com a própria empregada da limpeza, sexagenária, que aos primeiros raios da manhã também veio fazer a sua oferta: 50 yuan.Logo após as primeiras candidatas, foi o empregado da recepção que me bateu à porta, com uma enorme calculadora na mão. Enquanto fazia um gesto que pretendia significar cópula, digitou: 200+50. Apontava para o 50 e para ele, querendo dizer que era a sua comissão.Tsian, que aceitou falar comigo, contou que trabalhou em várias fábricas antes de começar a prostituir-se num salão KTV, ou seja, de karaoke. Queria ganhar mais dinheiro, e nas fábricas o salário nunca ia acima dos três mil yuan. Um dos patrões deu-lhe a oportunidade. No KTV atendia clientes ricos por 800 ou mil yuan. “Finalmente podia ser livre. Comprava o que queria. E fiz muitos amigos empresários, com bons carros, que me levavam a jantar.”

Durou até Tsian ter 30 anos. Trabalhou em salas de karaoke, em cabeleireiros, em centros de massagens, sempre como prostituta e sempre em Donggwan. É ali que se concentra a maior parte das raparigas do campo que vêm trabalhar nas fábricas, de têxteis ou calçado, e por isso os clientes sabem que é ali o centro da prostituição. Para as raparigas é fácil, e muitas vezes necessária, ou óbvia, a deslocação de um emprego para o outro, embora sempre no mesmo sentido.“Voltar para as fábricas é muito difícil. Nunca mais nos habituamos de novo àquela vida”, disse Tsian, que agora tem 35 anos. “Muitas raparigas gostariam de se prostituir, para se libertarem daqueles horários de 14 horas nas fábricas. Falta-lhes a coragem porque têm amigas aqui que são da mesma terra e podem ir contar às famílias. Mas eu não conhecia ninguém. Não fazia qualquer diferença o tipo de trabalho a que me dedicasse. Agora já não me querem no KTV, venho aos hotéis.”

No mundo das fábricas vai-se mudando de emprego, sempre para melhor, até chegar a um limite, impossível de ultrapassar. No mundo da prostituição começa-se geralmente pelo topo, e vai-se mudando sempre para pior. E não há limite de sordidez que não possa ser ultrapassado.

Liu, a namorada de Sheng Long, tem 22 anos e trabalha numa fábrica em Dongguan. Esteve noutras onde ganhava mais, mas esta proporciona-lhe a segurança de um emprego estável. Fabrica solas de borracha para sapatilhas Nike. Ganha 2500 yuan, mas tem alojamento gratuito, nas instalações da fábrica. Partilha um quarto com outras cinco raparigas, em beliches. Encontrei-a num centro comercial em Dongguan.

“Quando vim para Shenzhen, a única coisa que queria era comprar um telemóvel. Trabalhei em sítios onde nem podíamos ir à casa de banho, trabalhávamos à noite e aos fins-de-semana, e só pagavam ao fim de três meses. Mas quando consegui comprar o telemóvel, fiquei feliz.”

Liu sentiu que era finalmente uma rapariga da cidade. A partir daí, não se pode voltar atrás. “Passei momentos muito maus. Fui assediada por um patrão, que me atacou e agrediu. Fiquei sem emprego. Mas não podia desistir. Que fazia? Voltava para a aldeia? Que iria fazer lá? Eu nunca trabalhei no campo. As pessoas da minha idade que estão na cidade vieram directamente da escola. Nunca trabalharam na agricultura. Isso é coisa da geração dos nossos pais. Para mim, regressar à aldeia é uma derrota.”

Para muitas raparigas que vêm para a cidade, não há caminho de retorno, porque, segundo a tradição chinesa, só podem deixar a casa dos pais para casar. Os rapazes têm sempre o seu lugar na casa onde nasceram, as raparigas não. E é difícil arranjar marido quando se volta à aldeia. Os rapazes que ficaram desdenham das raparigas que adquiriram hábitos citadinos; e às raparigas não agradam os rapazes do campo, que consideram de nível inferior.

É também na cidade que é preciso encontrar o amor. Essa é uma das razões que tornam o telemóvel tão importante. A outra é a necessidade de estabelecer muitos contactos, para encontrar empregos e subir na “carreira”. O telemóvel é por isso um símbolo da nova vida nas cidades.E isso é ainda mais evidente na cidade onde se produz a maior parte dos telemóveis do mundo. Huaqiangbei é a zona de Shenzhen consagrada à electrónica. É uma avenida e muitas ruas perpendiculares onde só há lojas de telemóveis, computadores, câmaras. As mais populares são uma espécie de armazéns, com muitos andares e centenas, ou milhares, de bancas onde se vende toda a espécie de equipamentos e de serviços. Telemóveis, tablets e computadores ocupam a maior parte dos andares, com todos os modelos e todas as marcas, verdadeiras e falsas, mas depois há andares inteiros só com carregadores, outros especializados em teclados, modems, pens, chips electrónicos.Cada “loja” destes centros consiste em apenas um balcão com uma montra, e um número indeterminado de empregados muito jovens, de dois a dez, rapazes e raparigas, que nunca dizem “não” a um cliente. Têm sempre tudo, e se não têm fazem um telefonema e mandam buscar, em poucos minutos. São milhares de lojas, e milhares de clientes, são imensas a oferta e a procura, e diz-se que alguns dos proprietários destes minúsculos estabelecimentos são multimilionários.Armazéns inteiros não são de vendas, mas de reparações. Empregados adolescentes, de ambos os sexos, debruçam-se sobre circuitos integrados, ou computadores abertos e estripados, enquanto os clientes esperam sentados num banquinho.Song tem 19 anos, usa cabelo pintado de louro e minissaia e estava a desmontar, uma a uma, as peças do teclado de um Mac Powerbook. Veio de uma aldeia como toda a gente em Shenzhen (a cidade, com 14 milhões de habitantes, tem praticamente 30 anos) e começou por trabalhar numa loja. Mas gostava de computadores e tentou aprender com os colegas sobre o seu funcionamento. “Passei noites e noites acordada, a estudar, a mexer nas peças de um computador velho, a montar e a desmontar”, contou Song que ao lado do teclado espalhado sobre o balcão tinha um pedaço de pizza e um prato de sopa de massa instantânea. “Para mim é fácil. A minha cabeça funciona como um computador. Olho para os circuitos e percebo logo tudo.”

É o outro lado do mundo das fábricas. A possibilidade de subir na vida. Para muitos jovens, não basta comprar um telemóvel e passear no centro comercial. Querem aprender, adquirir capacidades que lhes permitam conquistar empregos melhores nas empresas, ou aceder a empresas mais prestigiadas e promissoras, como a Huawei. Há uma hierarquia, nas fábricas, nas empresas, tal como entre os trabalhadores. E para ascender é preciso lutar. A ascensão social, em si mesma, é todo um mundo, todo um mercado. Pululam os cursos de informática, de vendas, de gestão, de inglês, de técnicas de falar em público, de como responder a entrevistas ou simplesmente de autoconfiança e desenvolvimento pessoal. Circula também toda uma literatura de auto-ajuda e autopromoção.Alguns cursos e personal coaches tornam-se populares e prestigiados e podem custar fortunas. Para lhes aceder, é necessário já um certo estatuto.

A mobilidade social é possível, mas não fácil. A maior parte dos trabalhadores industriais da cidade vieram das aldeias e não têm direito a nenhum apoio estatal para a sua formação porque são… ilegais.

Na China, desde uma lei recuperada em 1958, os cidadãos têm bilhetes de identidade diferenciados consoante vivem nas cidades ou nas zonas rurais. Aos cidadãos urbanos são concedidos direitos privilegiados aos cuidados de saúde e à educação. Quem vem do campo para a cidade, apesar de o fazer, hoje, com o encorajamento do Governo, não consegue alterar o seu estatuto, continuando a ser, teoricamente, e muitas vezes uma vida inteira, cidadão rural. É um sistema, designado por hukou, que se tornou hoje numa das principais fontes de discriminação e protestos entre os trabalhadores das fábricas.Conseguir um bilhete de identificação urbano é um processo burocrático muito difícil, que implica, entre outras exigências, que o candidato possua uma casa na zona urbana. Ora o preço das casas nas cidades subiu de tal forma nos últimos anos, que a única alternativa para os trabalhadores migrantes é arrendar uma, ou um quarto. Grande parte deles, aliás, vive nas instalações fornecidas pela própria fábrica.Em muitas cidades, há uma rivalidade latente, que muitas vezes resulta em violência, entre os trabalhadores urbanos e os migrantes, de origem rural, designados por nongmingong e considerados de segunda classe. Não é o caso de Shenzhen, onde quase toda a gente é migrante. Aqui, todos os cidadãos são de segunda classe. Nongmingong.Shenzhen é uma Zona Económica Especial (ZEE), a primeira estabelecida na China, após a reforma de Deng Xiaoping, em 1978. Enormes outdoors com a imagem de Deng distribuem-se aliás pela cidade, numa homenagem ao homem que a transformou na mais rica da China. A criação da ZEE, com inúmeros incentivos, atraiu o investimento estrangeiro e misto, trazendo para a cidade fábricas gigantescas que revolucionariam a economia chinesa e mundial. Shenzhen foi o motor do crescimento económico da China. O modelo foi depois aplicado a outras cidades.Nos primeiros anos, a multidão de migrantes que veio dos campos para trabalhar nas fábricas formou um lumpen miserável que envergonhou o país. Até então, a pobreza estava escondida no imenso e inacessível mundo rural. Agora surgia exposta, como uma chaga digna da revolução industrial novecentista, um escândalo do mundo moderno. Era a época dos têxteis, do trabalho escravo.Mas essas massas migrantes seriam uma imensa fonte de enriquecimento, e hoje transformaram-se na nova classe média da China. Os salários já não são de 20 euros, mas de 400, as pessoas acederam a uma panóplia de bens de consumo e catapultaram o país para a primeira linha da economia mundial.Empresas como a Huawei são hoje o rosto da China. As condições de trabalho nas suas fábricas podem ainda parecer degradantes, mas para os padrões chineses representam uma emancipação.

O complexo de produção da Huawei situa-se em Dongguan. É outro campus de acesso restrito, com as suas fábricas, os seus restaurantes e lojas, os seus dormitórios. Estacionados perto dos portões de entrada contam-se várias dezenas de autocarros, que todos os dias levam os trabalhadores para as suas zonas de residência. Porque nem todos podem viver nos bairros da empresa, no interior do campus.

Visitei uma das fábricas, uma linha de produção de circuitos integrados, onde trabalham cerca de 13 mil pessoas. Toda a maquinaria é ultramoderna, bem como os sistemas de controlo de qualidade, de higiene ou de manutenção de temperaturas e de níveis de esterilização nas unidades produtivas. Sistemas de incentivo à disciplina e produtividade, explicaram-me, foram aplicados por especialistas japoneses contratados para o efeito.À entrada da linha de montagem, há um quadro onde cada trabalhador coloca, no início do dia, um ícone com um smile, uma expressão triste ou neutra. Deverá fazê-lo de acordo com o estado de espírito que o anima quando vai trabalhar. Supervisores examinam mais tarde o quadro, para prevenir atempadamente situações de depressão, com consequente baixa de produtividade e eventual suicídio. Outro quadro, noutra zona da fábrica, anuncia os prémios de produtividade.A um operário que desempenhava uma função repetitiva de inspecção de circuitos numa placa perguntei quanto ganhava. Com isso criei um momento de embaraço entre todos os presentes. “É uma regra da empresa não falar de dinheiro”, explicaram. “Ninguém pergunta a um colega quanto ganha. Não sabemos os salários uns dos outros.”

Mais tarde visitei os dormitórios. Situam-se em bairros cercados onde só se entra ou sai com um cartão próprio. Mais uma vez, na nossa limusina preta circulámos por todo o lado, atravessámos checkpoints de guardas armados sem que ninguém nos perguntasse nada.

Desrespeitando as ordens de Amy Yan, bati à porta de um dos apartamentos. Depois outro e outro. Os prédios são de construção pobre, e em cada um dos seis ou oito andares há mais de 60 quartos, de portas alinhadas em corredores escuros, como num hotel. Em muitos dos prédios, os quartos têm oito camas, em beliche, para oito trabalhadores. Cada um paga 50 yuan (seis euros) por mês, à empresa. Noutros prédios há pequenos apartamentos para famílias. Uma sala, um quarto, cozinha e casa de banho sem sanita.

“Vivemos aqui há quatro anos”, disse, num destes apartamentos, Guiten Meng, de 23 anos. Veio de Chongqing, trabalha na linha de montagem, ganha quatro mil yuan por mês, com as horas extraordinárias. Aqui, sem a pressão dos supervisores, não tem problemas em falar dos salários. Agora teve um bebé e trabalha menos horas. A mãe veio de Chongqing para tomar conta do menino de quatro meses. Dorme no sofá. O marido de Guifen também trabalha na fábrica. Tem o mesmo salário. Desde que chegaram, nunca foram a Shenzhen. “Há um centro comercial aqui em Dongguan”, explicou Guifen, sempre com o telemóvel na mão. “Fomos lá algumas vezes. Não é preciso ir mais longe.” Mas estão fartos de viver no dormitório, querem encontrar uma casa fora do campus.Vivendo aqui, raramente há oportunidade de sair, porque tudo fica longe e é preciso dar muitas horas de trabalho à empresa. Mas a dedicação não significa necessariamente promoções, quando se trata das camadas mais baixas da mão-de-obra. Nenhum dos trabalhadores das linhas de montagem com quem falei tinha sequer ouvido falar do sistema de acções em vigor na Huawei. Segundo a informação oficial, contudo, 65% dos trabalhadores são donos de uma parte da empresa.Quando se tem mais de dois anos de serviço e se é cidadão chinês, obtém-se o direito de possuir acções. É isso que define o estatuto da empresa, explicou-me Roland Sladek, presidente do departamento de media internacionais: trata-se de uma cooperativa.Todas as acções pertencem aos trabalhadores, segundo um sistema de regras de antiguidade e promoções. As acções não são transaccionáveis, nem sujeitas a especulação. Ainda segundo Roland, um alemão cuja função é promover internacionalmente a boa imagem da Huawei, o líder e fundador da empresa, Ren Zhengfei, detém a maior parte dessas acções: 1,4%.O board de directores e toda a estrutura de gestão são conhecidos, disse Roland, pelo que são absurdas as alegações de que o Governo controla a Huawei.Há no entanto uma célula do Partido Comunista na empresa. Até que ponto o seu papel é determinante, não se sabe. Sabe-se que a Huawei é uma empresa de imensa importância estratégica no desenvolvimento da China e na sua posição internacional.Precisamente por isso, seria estúpido comprometer o seu êxito usando-a como instrumento de espionagem, argumenta Roland. Tecnicamente, aliás, as acusações são absurdas. “É preciso não ter nenhum conhecimento deste mercado, nem do funcionamento das coisas, sob o ponto de vista científico.”

Faz sentido. Se a Huawei incorpora chips de espionagem nos seus dispositivos, como interpretar o facto de, nas suas linhas de montagem, se fabricarem componentes usados pela Foxconn? Na fábrica de circuitos integrados da Huawei pude ver, alinhados numa unidade de armazenamento, centenas de enormes caixotes negros com letras gravadas a branco: Foxconn. A mesma onde são fabricados os iPhone, os Nokia e os Eriksson.
Ren Zhengfei trabalhou no Exército de Libertação Popular porque eram os tempos da Revolução Cultural e não era possível desenvolver investigação científica noutro lugar, explicou Roland. Isso não significa que a Huawei esteja hoje ao serviço das Forças Armadas chinesas.

Só muito recentemente a Huawei afirma ser uma empresa privada. Definia-se como “colectiva”, um estatuto incompreensível para os seus parceiros internacionais.Quem observa de perto a evolução da empresa, porém, reconhece a influência governamental nas suas decisões estratégicas. Quando se apresenta a concursos internacionais, pode ter preços abaixo dos do mercado, porque tem apoio incondicional, nomeadamente dos bancos chineses (todos estatais), que têm ordens claras do Governo para sustentar a Huawei.Não seria possível ser de outra forma. Nenhuma empresa privada desta dimensão poderia ser independente num regime de partido único. Se estivesse sujeita e abandonada às contingências e crises dos mercados internacionais, estaria a colocar em perigo a recente prosperidade dos seus milhares de trabalhadores. E eles não o permitiriam. Ou revoltar-se-iam contra o próprio regime. Tal como as terras, na China as fábricas “são do povo”.

Reportagem publicada na Revista 2 de 4 de de Novembro de 2012, no âmbito do projecto PÚBLICO+

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