Voos da CIA: Portugal ajudou a transferir mais de 700 prisioneiros para Guantánamo

Foto
Instado a comentar a informação, o ministro dos Negócios Estrangeiros português disse ontem, em Bruxelas, que não tem qualquer informação sobre o relatório Joe Skipper/Reuters

A organização de direitos humanos britânica Reprieve garante que mais de 700 prisioneiros foram ilegalmente transportados para a base norte-americana de Guantánamo "com a ajuda de Portugal" e que pelo menos 94 voos passaram por território português, entre 2002 e 2006.

A Reprieve, organização não-governamental de beneficência criada por advogados, em 1999, com o objectivo de prestar representação legal a prisioneiros que enfrentam a pena de morte, sobretudo nos Estados Unidos, divulgou um relatório que, nas suas palavras, "demonstra inequivocamente que 728 de 774 prisioneiros de Guantánamo foram transportados através de jurisdição portuguesa".

Instado a comentar a informação, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, disse ontem, em Bruxelas, que não tem "qualquer informação" sobre o relatório, reservando por isso um comentário para quanto tiver acesso ao documento.

O relatório - aponta a organização de advogados - foi compilado através da comparação de dados obtidos junto das autoridades portuguesas, informações do Departamento de Defesa dos Estados Unidos com datas de chegadas de prisioneiros a Guantánamo e testemunhos de muitos prisioneiros.

O documento, que, segundo a Reprieve, detalha pela primeira vez os nomes dos prisioneiros e as suas histórias, aponta que "pelo menos em seis ocasiões aviões de transferência de prisioneiros voaram directamente da base das Lajes nos Açores para Guantánamo".

"Nenhum destes prisioneiros poderia ter chegado a Guantánamo - e sido sujeito a seis anos de abusos - sem a cumplicidade portuguesa e existem ainda várias dezenas de homens que poderão enfrentar a pena de morte após terem sido transferidos pelos Estados Unidos através de jurisdição portuguesa", afirmou o Director-Gegal da Reprieve, Clive Stafford Smith.

A ONG defende que as investigações "demonstram que Portugal desempenhou um papel de apoio de relevo no amplo programa de transferência de prisioneiros" e, "pelo menos, nove prisioneiros transportados através de jurisdição portuguesa foram cruelmente torturados em prisões secretas espalhadas pelo Mundo antes da sua chegada a Guantánamo".

Segundo o responsável da Reprieve, "Portugal tem de levar a cabo um inquérito público e exaustivo e chegar ao fundo destas violações do direito internacional".

Actualmente, encontra-se em curso um inquérito-crime aberto pelo Ministério Público português há cerca de um ano, tendo na semana passada fonte da Procuradoria-Geral da República dito à Lusa que a decisão final está para breve.

Este relatório da Reprieve é publicado sensivelmente um ano depois de o Parlamento Europeu ter aprovado o relatório final da comissão temporária, presidida pelo eurodeputado português Carlos Coelho, que, durante mais de um ano, averiguou os alegados voos ilegais dos serviços secretos norte-americanos (CIA) na Europa para transporte ilegal de prisioneiros suspeitos de terrorismo.

O relatório do PE exortou diversos Estados-membros, entre os quais Portugal, a aprofundar as investigações, saudando a abertura de um inquérito-crime pelo Ministério Público português.

Portugal acabou por se tornar um dos países em foco durante os trabalhos da comissão do PE, muito por acção da eurodeputada socialista Ana Gomes, que foi diversas vezes criticada pelo Governo de José Sócrates e pelo seu partido, o PS.

Entretanto, uma participação de Ana Gomes à Procuradoria-Geral da República (PGR) e outra do jornalista da "Visão" Rui Costa Pinto levaram o Ministério Público português a decidir, em Fevereiro de 2007, a abertura de um inquérito-crime em Portugal, que deverá estar concluído dentro de dias.

O caso dos "voos da CIA" teve início em Novembro de 2005, quando o jornal norte-americano "Washington Post" revelou a existência de prisões secretas da CIA em vários pontos do mundo, incluindo em países do Leste europeu.

Rapidamente, o assunto em foco passou a ser não tanto as prisões secretas (cuja existência nunca viria a ser provada), mas antes o transporte ilegal de prisioneiros suspeitos de terrorismo e os chamados "voos da CIA", que, segundo a comissão do PE, foram uma prática corrente na Europa desde os atentados de 11 de Setembro de 2001, nos EUA.

Sugerir correcção
Comentar