Vidas paralelas: Matteo Renzi e Manuel Valls

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Que têm em comum Matteo Renzi e Manuel Valls, para lá de serem os novos primeiros-ministros da França e da Itália, gozarem de alta popularidade, na esquerda e para lá da esquerda, e manifestarem uma inaudita energia? A primeira semelhança é o dom de irritar os seus partidos — o gosto de violar tabus, enterrar dogmas e dizer em voz alta “verdades inconvenientes” (ver Revista 2). Tendo um percurso político diferente, encarnam o realismo e o reformismo. Dizem-se de esquerda e são acusados de ser direita. Antes de ir ao assunto, passemos pela actualidade.

1. A Itália está na moda em Paris. A conquista do poder por Renzi suscitou em França uma atenção condescendente. Foi elogiada a sua energia. Mas suspeitava-se de mais um “fenómeno italiano”, tal como o foi Berlusconi. Seria um breve meteoro? Seria mesmo de esquerda? Teria sequer um programa? Ou representaria o “grau zero” da política substituída pelo mero activismo?

Depois da catástrofe eleitoral do Partido Socialista (PS), a condescendência deu lugar à exaltação: “O Partido Socialista procura a sua via política na Itália de Renzi”, noticia o Nouvel Observateur. Benoit Hamon, líder da esquerda do PS (e novo ministro da Educação), e o deputado Jean-Marie Le Guen foram à televisão anunciar a boa nova. Adere a esquerda ao social-liberalismo transalpino, elogiado pelo patronato francês? Seria “notável”, comenta o jornalista Guillaume Malaurie.
Hamon e Le Guen sublinharam dois pontos. “Na Itália, fez-se uma redução de impostos que deu às famílias mais modestas 10 mil milhões de euros” em nome do crescimento. Em segundo lugar, Renzi está a travar um braço-de-ferro com Bruxelas a propósito do défice. Declarou que a Itália cumpriria “os seus compromissos com a Europa”, acrescentando: “Mas há um compromisso ainda mais importante — a vocação da Europa, que não deve ser um conjunto de tecnocratas sem alma.”

Entretanto, assinala Malaurie, os dois socialistas “iludiram os pratos fortes da política de Renzi”, como a medidas fiscais em benefício das empresas, “uma reforma do mercado do trabalho que aponta para um contrato menos protector mas mais universal” ou o projecto de suprimir 85 mil postos de trabalho na função pública.

Pensado na política francesa, Malaurie sublinha três lições italianas. “A primeira é que Renzi, que não tinha nenhuma experiência de governo, tinha em compensação uma visão muito clara da natureza da crise.” Segundo, “num país tão bloqueado pela coligação dos corporativismos, Renzi está a fazer a prova de que o espírito de reforma surge reformando.” Por fim, Renzi teve a arte de tirar partido da crise económica italiana e da decomposição do sistema político.

2. Ambos têm um poder frágil. Valls corre altos riscos por dispor de uma tangencial maioria parlamentar. Renzi tem uma anómala e instável maioria num Parlamento caótico. Ambos têm de defrontar a resistência da ala esquerda dos seus partidos.

Renzi dispõe de uma margem de manobra superior. Valls é muito popular mas está sob a tutela de François Hollande. E enfrenta desde já a oposição de “cem deputados em cólera” do PS que se opõem à nova linha económica de Hollande e Valls. Com uma taxa de aprovação popular superior a 60%, Renzi está a fazer reformas em marcha acelerada e, quando o tentam bloquear, explica que, “sem reformas, vou-me embora” e os partidos terão de prestar contas aos italianos.

Assumiu o risco de negociar com Berlusconi as reformas institucionais. A ameaça que agora defronta é o declínio do Cavaliere, velho, em queda nas sondagens e a perder a autoridade sobre os seus parlamentares. Os senadores da Força Itália (FI, de Berlusconi) querem anular a reforma do Senado que lhes retirará os lugares e os privilégios. “A anarquia na FI arrisca-se a fazer estoirar o pacto sobre as reformas”, escreve La Repubblica. E a próxima reforma, a do mercado do trabalho, suscita o nervosismo sindical.

A menos de 50 dias das eleições europeias, sob a ameaça de Marine Le Pen e de Beppe Grillo, novas crises políticas seriam suicidárias. Note-se que a linha de tensão com Bruxelas, adoptada por Roma e Paris, não se deve só às divergências sobre o défice mas também a uma lógica eleitoral para desarmar o discurso populista e anti-europeísta.

3. O problema de fundo começa no “choque com a realidade” e nas perguntas que se fazem. Por exemplo: por que é que em toda a Europa, e não só na Europa, os partidos de esquerda se mostram incapazes de tirar partido da maior crise económica das últimas décadas?

Por que se torna cada vez mais nebuloso distinguir a esquerda e a direita quando governam? Por que é que, em muitos casos, a direita parece mais apta a responder à mudança? Por que é que em quase toda a Europa se multiplicam movimentos de contestação, populares e de direita?

O Monde levantava na sexta-feira uma ponta do véu sobre as ideias de Valls: “Quando fala de economia, Manuel Valls raciocina sempre no quadro da globalização, que não hesita em descrever como ‘uma formidável fonte de criação de riqueza’, ao contrário, por exemplo, de um Arnaud Montebourg, chantre da ‘desglobalização’.” Montebourg é o novo ministro da Economia.

Explica Valls, a propósito do esgotamento do modelo social-democrata: “O pior é que a esquerda se revela hoje incapaz de regenerar o Estado-providência adaptando-o às realidades da nossa época. À falta de afrontar as consequências da globalização e da individualização da sociedade, a esquerda fecha-se numa concepção pessimista do mundo.”

As sociedades ocidentais mudaram profundamente. As velhas burguesias nacionais, ancoradas na indústria e no espaço nacional, cedem o lugar a uma burguesia financeira transnacional que gere o seu património à escala mundial.
O quadro de combate deixou de ser o do século XX. Interroga-se Valls: o que é ser de esquerda, hoje, num mundo globalizado e avesso às utopias? Que deve fazer a esquerda para ser capaz de governar duradouramente?

Escrevia ontem, no La Stampa, o politólogo Luca Ricolfi: “Há qualquer coisa de libertador no novo curso renziano. Até ontem, a Itália era atravessada por um incrível número de dogmas, preconceitos, mitos, fetiches, totens e tabus. (...) Renzi e os seus estão a demolir, um após outro, os fetiches da cultura da esquerda. Por várias razões. A primeira é que eram crianças, ou nem sequer nascidos, quando tais fetiches foram eregidos em baluarte do mundo progressista e, portanto, não têm o temor reverencial. A segunda é que são os próprios italianos que já não suportam certos fetiches e certas personagens porque os vêem como causa ou co-autores do presente desastre.”

Perante as mutações da sociedade, “a esquerda tem medo”, escreve Renzi. “Parece que não se dá conta de que o novo mundo em que vivemos é também fruto do sucesso das suas próprias políticas, das mudanças ocorridas no século XX graças à sua iniciativa. (...) Mudarmos nós mesmos é a responsabilidade mais grave de todas.” Ironiza: “Uma esquerda que não muda é de direita.”

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