Vésperas do Lusitânia

Nada tão atual como pensar em algo que ocorreu faz amanhã cem anos. Porque foi aí que começou verdadeiramente o mundo em que vivemos: com o naufrágio do Lusitânia, a 7 de maio de 1915.

Quando a I Guerra Mundial rebentou, no verão de 1914, foi apenas o velho mundo a acabar — os impérios europeus que se foram levando um a um para a guerra. Mas quando o Lusitânia, que vinha da América para a Europa e foi atingido por um torpedo alemão ao largo da Irlanda (que então ainda não era independente), foi inevitável a entrada dos EUA na Grande Guerra. E foi aí que começou o século americano em que, de certa forma, ainda estamos.

Pode dizer-se que a desagregação europeia já vinha de longe, e que a pujança norte-americana vinha do fim da sua Guerra Civil. Os EUA eram considerados o país do futuro tanto por reacionários como por revolucionários (Marx escrevia para a imprensa de Nova Iorque e pensou mudar-se para o outro lado do Atlântico). Mas essas grandes tendências são feitas de muitas pequenas coisas contraditórias, e precisam de momentos desencadeadores que as revelem: pontos de viragem.

O presidente Woodrow Wilson, dos EUA, seguia com interesse o conflito europeu e não excluía (ou, segundo alguns, procurava ativamente) uma ocasião para participar nele. Sem o naufrágio do Lusitânia, que afundou em 18 minutos e no qual pereceram mais de cem cidadãos estado-unidenses, teria sido impossível virar a opinião daquele país contra os alemães. Com a entrada dos EUA na I Guerra Mundial, os pratos da balança desequilibram-se a favor dos aliados ocidentais — mas em troca de uma dívida colossal aos americanos e de uma possibilidade de intervenção em assuntos europeus que duraria por várias gerações.

Essa é metade da nossa história do século XX (a outra metade é, evidentemente, a do nascimento da União Soviética a partir do colapso do Império Soviético no fim da guerra). Assim, entre o mundo antigo e o mundo novo, medeiam dois naufrágios de barcos. O naufrágio do Titanic, em 1912, é parte do mundo antigo: dos impérios europeus, da cultura burguesa e do capitalismo globalizado. O naufrágio do Lusitânia, em 1915, é parte do mundo novo, que seria de ascendência dos EUA (e depois da URSS), dos revanchismos nacionais, dos movimentos de massas e do fogacho da Sociedade das Nações, antes de ser do Holocausto e da Guerra Fria. A URSS desapareceu e a Rússia de Putin tem hoje um impacto amplo, mas regional. Os EUA, apesar da ascendência da China, continuam a ser uma potência global.

Não se sabe quanto mais tempo durará esta fase, mas hoje, na véspera do seu centenário, o que mais impressiona é a velocidade com que tudo basculou. Entre o naufrágio do Titanic e o do Lusitânia passaram apenas três anos, de abril de 1912 a maio de 1915. O que aconteceu depois durou cem anos e resistiu a mais uma guerra mundial.

Quando as vulnerabilidades são evidentes e as grandes tendências estão instaladas, não demora muito a que um qualquer evento consiga fazer balançar o mundo. A partir daí, já não há volta a dar. Essa conclusão tem, parece claro, aplicação hoje em dia. Sabemos quais são as nossas vulnerabilidades. Só não sabemos qual é o nosso Lusitânia.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários