Vaticano acusa Charlie Hebdo de “não respeitar crentes de todas as religiões”

Para homenagear os seus mortos, o jornal satírico volta a apontar o dedo à fé. O Deus da nova capa “não ajuda ao apaziguamento” tão necessário, defende líder religioso francês.

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Em editorial, o Charlie denuncia “os fanáticos brutalizados pelo Corão” JACQUES DEMARTHON/AFP

A antecipar a chegada às bancas da edição do Charlie Hebdo que assinala um ano do atentado que dizimou a sua redacção, o jornal do Vaticano acusou o semanário satírico francês de incentivar “um mundo que não quer admitir a existência ou respeitar os crentes da fé em Deus, independentemente da sua religião”. “Um ano depois, o assassino continua à solta”, lê-se na capa do Charlie desta quarta-feira, por cima de uma imagem de um Deus barbudo com pintas de sangue e uma Kalashnikov às costas.

“O episódio não é uma novidade: atrás da bandeira enganadora de uma laicidade sem compromissos, a revista volta a esquecer aquilo que tantos dirigentes religiosos de todas as pertenças não cessam de repetir para rejeitar a violência em nome da religião: utilizar Deus para justificar o ódio é uma verdadeira blasfémia, como disse várias vezes o Papa Francisco”, escreve na sua edição de terça-feira o Osservatore Romano.

O jornal do Vaticano também cita o presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, Anouar Kbibech, que defende que a caricatura da capa do Charlie “fere todos os crentes das diferentes religiões”. “Globalmente, precisamos de sinais de apaziguamento, de concórdia. Esta caricatura não ajuda num momento em que precisamos de nos encontrar lado a lado. É preciso respeitar a liberdade de expressão dos jornalistas mas também a liberdade de expressão dos crentes”, insiste Kbibech.

A capa desta edição especial do Charlie, com uma tiragem de um milhão de exemplares, já era conhecida. O objectivo é homenagear os mortos, como explicou o cartoonista e actual director Laurent Sourisseau (Riss). Responsável pela capa, Riss escreve ainda o editorial, onde faz uma defesa aguerrida do secularismo e denuncia “os fanáticos brutalizados pelo Corão” e outros, de diferentes religiões, que gostavam de ter visto a morte do semanário por “ter a coragem de rir das religiões”.

Foi a 7 de Janeiro que os irmãos Cherif e Saïd Kouachi irromperam armados pela primeira reunião de edição do ano, matando oito membros da redacção, incluindo Stéphane Charbonnier (Charb), Bernard Velhac (Tignous) e os veteranos Jean Cabut (Cabu) e Georges Wolinski, num ataque que fez um total de 12 mortos. Riss ficou ferido com gravidade.

O atentado, reivindicado pela Al-Qaeda da Península Arábica, seguiu-se a inúmeras ameaças aos membros da redacção, principalmente Charb, que estava na publicação desde 1992 e era director desde 2009.

Ameaças e uma bomba incendiária
A republicação dos controversos cartoons de Maomé feitos pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 2006, já obrigara alguns dos jornalistas a terem protecção policial, e em 2011 a redacção foi destruída com uma bomba incendiária, depois de uma edição lançada com o nome Charia Hebdo – um trocadinho com sharia, a lei islâmica – e apresentada como obra de Maomé.

Uma semana depois do atentado de há um ano, o Papa condenou os assassínios cometidos em nome de Deus, descrevendo-os como “um absurdo”, mas também defendeu que “cada religião tem a sua dignidade”, que “há limites” nos insultos aos crentes. “Se um bom amigo fala mal da minha mãe, pode esperar um soco, e isso é normal. Não podemos provocar, não podemos insultar a fé das outras pessoas, não podemos fazer pouco disso”, disse Francisco.

Ora é precisamente isso que o Vaticano continua a acusar o semanário satírico de fazer. “Na escolha do Charlie Hebdo há um paradoxo triste de um mundo que é cada mais mais sensível ao politicamente correcto, quase até ao ridículo, mas que ao mesmo tempo não quer admitir ou respeitar a fé dos crentes em Deus, independentemente da religião”, lê-se no comentário do Osservatore Romano.

Um ano conturbado
Ao choque de 7 de Janeiro seguiu-se um ano conturbado para um jornal que ameaçava falir (vendia menos de 30 mil exemplares) e que agora se estabilizou nos 100 mil e tem um fundo de 20 milhões de euros graças às vendas depois do atentado – a primeira edição vendeu 7,5 milhões em todo o mundo. Na capa, assinada pelo principal cartoonista do jornal, Renald Luzier (Luz), Maomé aparecia com um cartaz onde se lia “Je Suis Charlie” (Eu Sou Charlie), o slogan adoptado um pouco por todo o mundo em solidariedade com as vítimas, debaixo da frase “tudo está perdoado”.

Em Maio, Luz anunciou que abandonaria o jornal em breve, explicando que continuar seria “um peso demasiado pesado para carregar sozinho” e dizendo-se “esgotado”. “Para mim, fechar cada nova edição tornou-se uma tortura, porque nenhum dos meus colegas está aqui comigo”, afirmou o homem que escapou ao ataque por se ter atrasado para a reunião de edição. 

Riss chegou a afirmar, em Julho, que o jornal não voltaria a publicar caricaturas do profeta dos muçulmanos. “Fizemos o nosso trabalho. Defendemos o direito à caricatura”, afirmou numa entrevista à revista alemã Stern. “É estranho, espera-se que exerçamos uma liberdade de expressão que mais ninguém se atreve a exercer", disse então. A decisão já terá sido revista. “Se a actualidade nos levar a desenhar Maomé, é isso que faremos”, garante agora Eric Portheault, o director financeiro. “Está fora de questão a autocensura, isso significaria que eles venceram.”

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