A Europa vista da janela do comboio

Percorremos oito mil quilómetros em 130 horas de viagem, em comboios e ferries, ao ritmo de regionais e TGV. Vimos como o que preocupa alguns parece estar tão longínquo para outros: do referendo à independência na Catalunha à crise na Grécia aos protestos na Bulgária.

Foto

O bilhete de Interrail tem uma folha vazia onde podemos escrever a partida e o destino de cada viagem. Quando embarcámos em Santa Apolónia num sábado à noite, a folha estava vazia. Num mês de viagem, iríamos enchê-la de nomes rabiscados das cidades por onde passámos.

A ideia era ver alguma Europa antes das eleições para o Parlamento Europeu. Tivemos encontros em comboios lentos e comboios rápidos, marcámos entrevistas em cidades, achámos pessoas, comícios e manifestações por acaso. No comboio nocturno para Madrid, o primeiro, o ambiente não era o melhor para conversas: a carruagem estava cheia, um mar de tapa-olhos, cobertores coloridos, phones e livros ou iPads. Já o bar está um pouco desolado, mas ainda conseguimos falar com os revisores sobre bitolas da linha (são diferentes entre Portugal e Espanha) e a crise (o número de passageiros diminuiu muito).

De Madrid para Barcelona, o primeiro TGV e um cheirinho da questão que realmente importa na Catalunha. Quatro freiras em animada conversa no TGV vão até Barcelona, onde vivem e já se sentem um pouco catalãs — “não políticas” apressam-se a dizer.

Barcelona, já sabemos, está empenhada em pedir um referendo para a independência. A surpresa é o grau de apoio a este referendo. Independentistas de gema encontrámos poucos, mas toda a gente queria votar, e toda a gente queria votar sim. O argumento da falta de respeito agudizado pela tentativa de ter mais aulas em castelhano é o mais usado, mas aqui e ali aparece o argumento económico: a Catalunha tem sobrevivido à crise melhor do que o resto de Espanha. De Barcelona passamos para Marselha, que vinha com uma reputação de wild west francês. Num mercado, dois adolescentes apressados espreitam o conteúdo de uma carteira que certamente não era deles. Ao olhar para o mercado, vemos vendedores, compradores, tentamos adivinhar proveniências ou raízes de quem passa em narizes, olhos, cor da pele, cabelos — todos diferentes mas nota-se uma coisa, a língua é só uma, francês. Perguntamo-nos como tem aqui tanto sucesso a Frente Nacional, e vemos a sua estratégia: a simpatia e a garantia de que não são racistas. Apenas querem o melhor para os franceses, dizem, fechar fronteiras e sair da UE.

A desilusão Francesa, o optimismo italiano e o desafio grego

França, primeiro percalço, um comboio que pára sem explicação e parece que pára muitas vezes. A antecipação de um percurso à beira mar pela Côte d’Azur dá lugar ao tédio da espera que se reflete numa conversa sobre política com uma jovem que votou duas vezes e já está desiludida, por isso não vota mais. Quando se ouve um francês dizer que ficou desiludido, a maioria das vezes falará de François Hollande. Sarah Taghouti, 21 anos, votou no actual Presidente e agora diz que não volta a votar.

Seguimos viagem e passamos o dia entre solavancos com o mar ao lado até Itália, Milão. É no centro do luxo que encontramos quem, no país, está a capturar esta desilusão de que falava a francesa Sarah Taghouti mas que existe por toda a Europa: um comício do movimento 5 estrelas do comediante Beppe Grillo.

É um encontro engraçado: o orador de fato é um apoiante do partido, enquanto o de calças de ganga e rabo-de-cavalo é deputado. O partido quer-se manter perto dos eleitores, e inclui propostas originais (escolheram os candidatos às europeias depois de candidaturas e votação no site).

Ainda assim, muitos não confiam nos grillini e nesta democracia directa que já se tem revelado caótica. Numa rua de Milão, uma faixa mostrava apoio ao primeiro-ministro Matteo Renzi, em quem muitos italianos depositam esperanças. O recente anúncio de um bónus de 80 euros para os trabalhadores italianos para estimular a procura interna foi uma das últimas medidas a despertar algum optimismo.

Passamos do cauteloso optimismo do Norte de Itália directamente para o pessimismo grego. O primeiro embate com a crise surge no porto italiano de Bari — o ferry que planeávamos apanhar para a Grécia não vai chegar ao destino por causa da greve nos portos gregos. Há que ficar um pouco antes, numa cidade bem mais distante, e o que tinha parecido uma pequena viagem agradável de autocarro de um porto até Atenas transformou-se numa longa e tortuosa saga de oito horas.

Passados poucos minutos do arranque, a polícia parou o autocarro e levou dois detidos. Nunca soubemos o que foi. Entre curvas e contracurvas vimos tanto a Grécia em crise como o seu esplendor: casas em obras à beira da estrada que pareciam ter parado a meio, nevoeiro pairando sobre a vegetação dos montes, flores de um implausível cor-de-rosa, o mar azul ao longe.

Chegamos a Atenas, e a capital grega não desilude: os gregos continuam a recusar um fatalismo da crise, e entre quem procure uma solução para si há sempre quem procure também algo para os outros: da professora que dá aulas grátis de música a quem deixa cafés pré-pagos para que quem não tenha dinheiro possa beber uma bebida quente.

Um protesto em Sófia, outro em Budapeste, e mais um ainda em Berlim

Da Grécia para a Bulgária parece que entrámos numa máquina do tempo. Paisagem verde e estradas perdidas; numa delas, um carro solitário passa vindo não se sabe de onde como um fantasma. Rebanhos na beira de estrada, o autocarro segue firme: não há comboios. Em 2011, por causa da crise, a Grécia interrompeu as ligações ferroviárias internacionais. (Um update na página do EURail diz que algumas já recomeçaram).

Chegando a Sófia, começamos com um estereótipo e a sensação de sermos enganadas pelo taxista. O alfabeto não ajuda na orientação e entre as diferenças está uma curiosa: os búlgaros acenam com a cabeça para cima e para baixo para dizer “não” e para os lados para dizer “sim”.

Sófia acaba por se revelar uma cidade simpática — toda a gente aceita falar, ser fotografado, e melhor, quase todos falam inglês. Como Iulia Maleva, apoiada em canadianas, que tem a bandeira da Bulgária no braço, a da União Europeia na mão, e que encontramos numa manifestação em frente ao Parlamento. Maleva manifestava-se há mais de 290 dias sem falhar, em protestos que começaram com multidões e que agora contam com uma dezena de pessoas, mas ela não se cansa, não desarma.

Começamos então uma das mais longas viagens do Interrail: Sófia-Budapeste, quase 20 horas, com uma paragem fora da União Europeia em Belgrado. Depois de um comboio até à Sérvia com um revisor careca de nariz adunco e enorme cruz de ouro ao peito, que parece ter saído de um filme (provavelmente de terror), o comboio seguinte é de luxo. As saídas e entradas do espaço europeu são acompanhadas de paragens para polícias de fronteira e guardas de alfândega de ambos os lados passarem o comboio a pente fino (do lado húngaro aparecem com escadotes e espelhos para ter a certeza de que não lhes escapa nada).

Saímos em Budapeste, e encontramos uma atmosfera de desalento para quem não concorda com o Governo de Viktor Orbán. Recém-reeleito, decidiu avançar com um polémico monumento às vítimas da invasão alemã que muitos criticam por ignorar o papel da Hungria no Holocausto. Dia após dia, grupos de pessoas foram derrubar as barreiras que sinalizavam o início da construção do monumento.

Tirando este sinal de vida cívica, o que encontrámos na cidade foi uma desilusão com a política que contrasta com o entusiasmo com a entrada na UE, há dez anos. Nas eleições legislativas, 40% do eleitorado absteve-se.

De Budapeste para a Alemanha, outro tipo de manifestação: contra a subida das rendas. No protesto, rigorosamente vigiado por uma enorme massa de polícias, encontramos o realizador Matthias Coers, que no filme Mietrebellen (inquilinos rebeldes) ouviu histórias como “a de uma reformada que às vezes tinha de escolher entre ligar o aquecimento ou comer”. “É criminoso que num país tão rico haja tanta pobreza”, diz. “E a Alemanha, que criou um mercado de trabalho barato, está a fazer o mesmo, através da troika, a países como a Grécia ou Portugal.”

Da ilha britânica ao coração da União Europeia

Aproxima-se a paragem britânica. Para passar para o outro lado do canal, vamos de ferry. Partimos de Calais, nome sinónimo de imigrantes que têm aqui a última paragem de uma viagem de meses e o último obstáculo para chegarem à terra prometida. Porque falam inglês, porque têm família, porque pensam que é mais fácil obter asilo, porque lhes dizem que é mais fácil encontrar trabalho no mercado negro.

Dormem de dia num acampamento de tendas cobertas de pó. Comem uma refeição quente por dia, tomam um chuveiro (ou dois, com sorte) por semana. À noite, tentam esgueirar-se para o interior de camiões que vão entrar nos ferries para Dover, Reino Unido. Alguns morrem.

A viagem de ferry é tão simples para nós: um bilhete, um passaporte, e em pouco mais de uma hora, estamos do outro lado. Olhamos para os camiões que entram e saem dos barcos e pensamos que pode estar ali alguém com quem falámos na véspera: será que o afegão que ainda ontem disse que tinha ficado 13 horas num camião acabou por conseguir entrar?

Londres é uma surpresa. A paragem que se previa mais fácil — afinal não há problemas com a língua nem com a orientação na cidade que apesar de grande e apressada terá sempre qualquer coisa a acontecer. Mas é o fim-de-semana da Páscoa e tudo se complica. Não se conseguem entrevistas (“neste país é feriado”), e os locais que visitamos vão-se revelando flop atrás de flop. Em último recurso é domingo e vamos até ao speakers’ corner — lá há-de estar alguém a dizer qualquer coisa sobre algo (ou contra algo). Mas o cantinho do Hyde Park está em obras e com a chuvada de dilúvio que cai não está lá ninguém.

Da ilha isolada vamos para o coração da Europa: Bruxelas. Lá desfazemos a ideia de que a capital belga é a capital da União Europeia: quem faz a vida multicultural da Bélgica não são os funcionários das instituições europeias, conta-nos Derek Blyth, um britânico-cidadão-de-Bruxelas, mas sim os imigrantes vindos de todos os cantos do mundo. Mais, apenas uma pequena minoria destes funcionários está registado para as eleições deste domingo, nota: “Isto diz alguma coisa, se as eleições nem suscitam entusiasmo nas pessoas que trabalham nas instituições…”, lamenta.

Blyth dá uma nota optimista ao nosso final de viagem: leva-nos até à Grand Place, a praça que já viu tantas lutas e vive agora um período excepcional de paz — a praça e toda a Europa, e isso é o mérito da União Europeia.“Temos sorte por todos os conflitos estarem contidos naquelas salas sem sol onde está Barroso reunido com os líderes europeus”, diz Blyth. Para ele, este é o ponto de encontro europeu. Não das instituições, mas dos cidadãos.

Ao fim de 11 paragens, o que se pode dizer sobre a forma como os europeus olham para a Europa? Parte da resposta pode estar nos interrails anteriores, com mais fronteiras e carimbos no passaporte e uma moeda diferente em cada país. A maioria das pessoas diz que gosta de estar na União Europeia por causa disto: não ter de parar nas fronteiras, não ter de trocar moeda. É ainda porque a geração Easy Jet está habituada a isto que há quem diga que a UE não se vai estilhaçar, por melhores que sejam os resultados dos partidos nacionalistas e eurocépticos. A tese é do historiador britânico Timothy Garton Ash: esta geração que tem como garantidos, se não os valores pelo menos as comodidades, irá reagir.

Apesar disso, para já o que se nota é uma grande desilusão. Tanto com o projecto europeu — e em Estados-membros antes tão ansiosos por entrar na UE, como a Hungria — como com a política em geral, quer nacional quer europeia. Isto acontece em países com uma democracia e uma entrada recente na UE, como a Bulgária, até a democracias velhas de pedra-e-cal, como a britânica.

Sugerir correcção
Comentar