Uma “coragem profética”

Se mais nada valer, que impere a ideia de uma “coragem profética” onde já tudo falhou.

Numa região que lhe é familiar, o Papa Francisco ultrapassou em escassos dias marcos históricos aparentemente inabaláveis. No México, foi recebido no Palácio Nacional e por um presidente do PRI, partido de origem anticlerical que domina a vida política mexicana dos últimos 75 anos (recepção histórica, nunca antes protagonizada por qualquer Papa, num país que só restabeleceu relações diplomáticas com o Vaticano em 1992). E em Cuba, num encontro-relâmpago, cujos preparativos foram mantidos em segredo durante vários meses, abraçou o chefe da Igreja Ortodoxa Russa, o Patriarca Kirill (depois do cisma de 1054, há quase mil anos, nunca tal havia sucedido).

Aqui, aproximou-os a desgraça: as perseguições aos cristãos no Médio Oriente, já antigas mas acirradas pelas vagas mais recentes do terrorismo. E isso tornou possível que, além do seu inédito encontro, os líderes da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa russa assinassem um documento conjunto pedindo a protecção dos cristãos perseguidos. Kirill disse ter a sensação de que o encontro se dava “no tempo certo, no local certo”, e até isso se reveste de alguma ironia histórica: Cuba, em cujo aeroporto se deu o encontro, transitou nestas décadas de aliada da extinta União Soviética para a reconciliação com Washington num processo em que se envolveu o Vaticano, de João Paulo II até Francisco.

Mas foi no México que o Papa pediu aos padres locais uma “coragem profética”, dizendo que face ao narcotráfico e à violência não será mais possível “aos pastores da Igreja” refugiarem-se “atrás de simples denúncias”. Isto pediu-o aos padres. Aos políticos, no palácio presidencial, pediu o que dificilmente será cumprido ou escutado: que abandonem os privilégios e garantam “justiça real” e segurança aos seus cidadãos: “De cada vez que optamos pela via do privilégio e dos benefícios para nós próprios, mais cedo ou mais tarde a sociedade torna-se um terreno fértil para a corrupção, o tráfico de droga, a exclusão das diferentes culturas, a violência, o tráfico de seres humanos, a morte.”

“Uma lufada de ar fresco para a tristeza perene do México”, comentou, segundo o jornal El País, a escritora e jornalista mexicana Guadalupe Loaeza. E a “lufada de ar fesco”, na pessoa do Papa Francisco, tem pontos ainda mais “quentes” no seu roteiro mexicano para visitar. Como Chiapas ou mártir Ciudad Juárez, cemitério de milhares de inocentes e palco de inomináveis crimes.

Se mais nada valer, que impere a ideia de uma “coragem profética” onde já tudo falhou.

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