Uma certa ideia de América espera, ordeira

Já Donald Trump era Presidente dos EUA e ainda havia filas compactas para entrar no Mall, em frente ao Capitólio. A segurança apertada atrasou quem queria ouvir um discurso de mudança e celebrá-la.

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Chove quando Donald J. Trump sobe ao palanque do Capitólio para jurar sobre a Bíblia e respeitar a Constituição americana e Bill ainda olha o mapa de Washington. “Onde fica a Pennsylvania Avenue?” Ali mesmo, onde estava, distraído das palavras que ecoavam nos altifalantes. Ri bem alto. “Eu que vim da Pensilvânia estou perdido em Pennsylvania Avenue!” Está vestido de Uncle Sam, cartola às riscas vermelhas e brancas, a risca azul com as estrelas brancas, casaca, calças vermelhas. Diz que não veio apoiar Trump, mas a América. “É isso que sou, parte do meu país que gostava de ver unido outro vez”, continua, barbas brancas compridas, óculos na ponta do nariz, sem ouvir ainda o discurso que parece, nesse momento, apontar o contrário da união.

Bill conta que esteve mais de três horas na fila à espera para entrar no Mall. Houve quem tivesse esperado muito mais, desde as duas, três da manhã, até às seis e meia, quando as cancelas abriram. Às nove, as que estavam mais perto do Capitólio já tinham fechado e, já Trump discursava enquanto 45.º Presidente dos Estado Unidos, ainda havia filas compactas à espera de passar a segurança apertada. Homens, mulheres e crianças de chapéus vermelhos com a frase Make America Great Again, bandeiras juntando o rosto de Trump à bandeira dos EUA, gente do Tennessee, Texas, Carolina do Sul, Virginia, New Hampshire. Vêm unidos por um slogan, por uma ideia de grandeza... Aguardam ordeiramente e já ligam os telemóveis para ver a tomada de posse on streaming.

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Apoiantes de Donald Trump EPA/ASTRID RIECKEN

Ether, americana da Califórnia, tenta ver se há uma maneira de contornar a espera. Veio com o filho adolescente e com um amigo, um padre franciscano com o hábito religioso que foge à conversa. Ether não esconde a sua felicidade. “Adoro Trump”, diz, bem alto. E porquê? “Porque ele vai fazer a América grande outra vez”, responde num português com sotaque enquanto diz que o ex-marido é brasileiro. Ether fala e ouvem-se palavras de ordem de manifestantes anti-Trump. “Não ao fascismo. Não ao Klu Klux Kan. Não à discriminação.” Encolhe os ombros com um sorriso. Tem uma justificação. “Este país precisa de regressar aos seus valores. Esta democracia tem sido governada por uma ditadura de esquerda. O ensino está doutrinado nesse sentido. Temos que nos tornar independentes disso, regressar aos princípios cristãos que foram os dos fundadores da América. A América vai ser grande outra vez”, repete, aumentando o tom de voz, dedos no ar num V de vitória. Qual é a sua profissão? “Sou empresária, claro”, refere baixinho. “Porque acha que votei em Trump?”

Ether não viu o soco. O soco que uma rapariga grita a quem a quer ouvir. Rosto vermelho, vestida de preto, estava de mãos dadas a outros rapazes e raparigas vestidos como ela a fazer uma barreira na rua que dava acesso a uma das entradas quando um homem que queria passar lhe deu um murro na cara. Foram segundos até o aparato policial ultrapassar o dos manifestantes. Um amigo da rapariga foi detido e o homem passou. Ninguém viu, mas quem viu grita. “É esta a polícia do Estado?!” E a polícia pede que explique, identifique. “Um homem, com um boné, uns 30 anos, branco, jeans, casaco vermelho”. Testemunhas confirmam e já as câmaras de televisão gravam.

As filas de quem quer entrar continuam; quem não quer entrar manifesta a razão pela qual decidiu ficar de fora de uma celebração que não sente como sua.

Duas “pessoas”, assim se identificam, passeiam-se por ali. São uma das presenças mais persistentes em cada porta. Uma caricaturada de Trump, a outra de Vladimir Putin. “Sim, casámo-nos. Não nos amamos, mas há muita conveniência nisto para já”, refere uma delas, voz feminina. Não dizem mais nada. O seu manifesto é aquela imagem que mostram o mais que podem. Dan olha-as. Veio do Ohio. Não comenta, nem sorri. “Estou aqui por outra coisa, para dar o meu apoio a Trump”. Como Ether, também fala do ensino. “Quem está aqui a protestar são miúdos. Não têm educação. Não se ensina História nem economia nas escolas. São eles quem está a promover a cultura do ódio, são eles que estão a ter um comportamento deplorável.” Juntam-se dois amigos. Dan apresenta-os. Trazem lenços na cabeça com a fotografia de Trump. “É Alex, o canalizador, e Frank, também canalizador.” Dan não esquece a argumentação. “Trump vai fazer o que precisamos. Criar empregos, acabar com esta treta da assistência à saúde de borla e senhas de alimentação para pobres. Esta gente tem é de trabalhar.” Os amigos. “Fizemos quatro horas e meia de carro para vir e agora dizem-nos que esta porta está fechada. Não vamos desistir por tão pouco.”

O céu está agora cinzento chumbo. Ouvem-se helicópteros. Abafam os protestos.

Um grupo de motards vestidos a rigor, apresenta convites e passa à frente. São apoiantes, “claro”, diz um deles, apressado. Um casal corre. Procura outra porta. Daniel e Emma Epstein apresentam-se. Vieram de Baltimore, menos de uma hora de carro. “Estamos muito orgulhosos, o nosso filho vai desfilar na parada”, ela diz isto e vai embora. Depois volta atrás. “Apoiamos hoje Trump, mas o nosso voto foi contra ‘ela’. ‘Ela’ é terrível”. Ele fica. “Não queríamos que ela ganhasse. Ele é o mal menor, espero que corra bem.” Tem uma bandeira enrolada na mão esquerda. Olha para trás e depois segue-a. Não sabe se entra, não sabe como será o discurso. “Espero que nos una”. E vai, quando um rapaz grita: “Duas T-shirts de Trump por cinco dólares”. Têm gravada a palavra inauguration, e Trump já é Presidente. O futuro ainda não está escrito nas camisolas.

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