Um Vaticano com paredes de vidro?

O “vidro” do Vaticano é à prova de “bala”, mas a paisagem interior iniciou uma mudança sem retorno.

Quando Álvaro Cunhal, líder histórico do PCP, escreveu o seu célebre livro O Partido com Paredes de Vidro (em 1985), a intenção primeira era desmentir, como o próprio explicou no prefácio à sexta edição, em 2002, “as caluniosas acusações que apresentavam o PCP como um partido aferrolhado num bunker de grossas paredes de cimento, ocultando os seus verdadeiros objectivos e a realidade da sua vida interna”. Ou seja, que os comunistas não eram bichos estranhos, mas sim pessoas como as outras, só que mais organizados, mais disciplinados, voluntariosos e devotos à causa de servir o povo. Isto foi o intuito da propaganda, já que bem depressa se percebeu que o tal vidro, mesmo testado na transparência, era à prova de bala. A ortodoxia resistiu – e resiste ainda – a tudo. Mas essa demonstração valeu aos comunistas, à época, insuspeitados elogios. As pessoas gostam de espreitar através de vidros e, sobretudo, de promessas de transparência.

Sem nada que o ligue ao PCP, a não ser o paralelo de uma outra (histórica) ortodoxia, o Vaticano tem resistido, até agora, a demonstrações de transparência ou exibição pública para lá das consagradas no hábito do contacto entre o Papa e os seus fiéis, na Praça de S. Pedro ou até bem longe dela. Reportagens ou documentários sobre os pretensos “segredos” do Vaticano são tentativas vãs para mostrar o que não se vê, ou se sabe que não pode ser visto. Há uma penumbra, ancestral, que se esconde por detrás da luz que irradia dos corredores dos seus palácios, e isso não é só pertencente à história (não só à da Igreja Católica, também à história universal), é também um garante dos seus dogmas.

O processo que agora o Papa Francisco desencadeou coloca, por um lado, em risco essa penumbra, arriscando uma transparência inédita nas polémicas internas aos círculos de cardeais, e, por outro, ameaça alguns pilares de dogmas tidos por imutáveis. O Sínodo sobre a Família, que levou ao Vaticano 235 participantes (entre cardeais, bispos, padres, leigos e casais de todos os continentes), teve reflexos públicos inusitados, com a divulgação de posições contraditórias, algumas até muito críticas face às posições do próprio Papa. E o facto de a sua votação, por imposição papal, ter sido tornada pública muda o que até aqui eram as práticas normais do Vaticano: os antagonismos eram apenas internos e o que transparecia para o mundo era uma posição final, única, sem mácula. Desta vez, católicos e não-católicos ficaram a par das divergências, das resistências, dos sinais de abertura, das recusas em ceder a novos ventos. Com temas como as uniões de facto, os divórcios e a posição face aos homossexuais na agenda, os votos finais (ontem divulgados) mostraram que a ortodoxia não cedeu a tentações de modernidade. Mas os passos já dados pelo Papa Francisco no sentido de humanizar as decisões do Sínodo abriram caminhos de mudança que dificilmente voltarão atrás. O vidro do Vaticano é ainda à prova de bala, mas a paisagem interior iniciou uma mudança sem retorno.

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