Um terço dos italianos são "independentistas". E depois?

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O politólogo Ilvo Diamanti publicou na segunda-feira, no La Repubblica, um artigo sobre os separatismos em que dizia que um em cada três italianos era “favorável a dizer adeus a Roma”. Era o seu habitual comentário às sondagens que dirige no instituto Demos. Depois da Escócia e da Catalunha, “o vento independentista sopra forte na Europa, sobretudo onde existem divisões territoriais — económicas e culturais — profundas e enraizadas.” E, na Itália, sopra sobretudo no Nordeste, com o Veneto na primeira linha — 53% dos entrevistados declaram-se favoráveis à independência.

O mais interessante no inquérito é revelar um fenómeno de dimensão nacional, embora mais forte no Norte. Na região Friul-Veneza Júlia, vizinha do Veneto, o apoio a um referendo soberanista estaria na casa dos 60%. Seguem-se regiões do Sul e do Norte: Sardenha (45), Sicília (44), Piemonte (37) e Lombardia (35). Observa Diamanti que as duas ilhas têm um estatuto de autonomia e dependem das transferências do Estado central. No Piemonte e Lombardia, há um surto regionalista que traduz uma erosão da identidade nacional.

Enigmático é que 35% dos inquiridos do Lácio (Roma) simpatizam com a ideia de independência — talvez, admite o politólogo, pela tentação de sobreporem a identidade de Roma à da Itália. A pulsão independentista é débil no Sul e nas zonas “vermelhas” da Itália Central.

Em termos políticos, a atracção pelo separatismo é muito alta nos eleitores da Liga Norte (76%), alta nos de Berlusconi (44), baixa entre os do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grilo (32), nos centristas (24) e sobretudo nos do Partido Democrático (18). Em termos sociais, tem a máxima expressão entre operários (45), trabalhadores independentes e pequenos empresários (42) e desempregados (38). É baixa entre reformados (25) e estudantes (19).

As motivações são contraditórias: os independentes e pequenos empresários queixam-se da burocracia e da pressão fiscal; os assalariados, “excluídos” e desempregados protestam contra a falta de protecção do Estado.

Aquilo que unifica as pulsões separatistas é o sentimento de rejeição do Estado e um “despaisamento em relação ao mundo que encaram como uma ameaça”, concluía Diamanti. E ironizava: “Assim, há o risco, para os italianos, de se encontrarem, no fim, realmente independentes. De todos. Os seja: sós.”

A questão do Veneto
Nas últimas décadas a grande questão italiana deixou de ser a “meridional” para dar lugar à “setentrional”, onde mais se manifesta a pulsão separatista. Argumentava, em Março, o filósofo Massimo Cacciari, antigo presidente de Veneza (pelo PD): “Desde há muito que falo da questão setentrional. Esta região conheceu um extraordinário desenvolvimento, quase miraculoso, e em poucos anos está a perder aquilo que tinha acumulado. As classes médias estão desesperadas, os operários perdem o emprego e os comerciantes fecham as lojas. Depois de terem conhecido o verdadeiro bem-estar, é como se caíssem do quinto andar.” A culpa não é dos independentistas. “[Eles] são o sintoma de uma situação que pode explodir rapidamente de uma forma dramática.” A Itália rejeitou uma reforma federalista e agora crescem “os sentimentos anti-Estado e o secessionismo”.

Na Itália, país tardiamente unificado (1859-1870), com grandes contrastes económicos, culturais e históricos, os separatismos sempre se manifestaram. Há movimentos independentis-tas no Veneto, em Trieste, no Friul, na Sicília, na Sardenha e, ainda, os irredentistas do Tirol.

O separatismo do Norte foi durante duas décadas liderado pela Liga Norte (LN), de Umberto Bossi, em nome duma imaginária Padânia. Hoje, a LN implanta-se também no Sul, com uma retórica anti-europeia, análoga à de Marine Le Pen.

Passemos ao Veneto, que reúne as províncias de Veneza, Belluno, Pádua, Rovigo, Treviso, Verona e Vicenza. Fez parte do Império Austro-Húngaro durante século e meio. A integração na Itália foi favorecida por Napoleão III e consumada após um referendo em 1866. Antes, em 1848, houve uma insurreição contra os austríacos, tendo sido criada uma “República de São Marcos” que durou 17 meses. Em 1979, surgiu uma Liga Veneta, invocando o passado glorioso da Sereníssima República de Veneza e usando slogans anti-italianos e xenófobos. Nas eleições de 1992, obteve 17% dos votos. Em 1997 houve o golpe de propaganda: um pequeno grupo armado, os Serenissimi, ocupou a Praça de São Marcos em Veneza e escalou o campanário da basílica para colocar uma bandeira.

As campanhas independentistas da Escócia e da Catalunha servem-lhes hoje de modelo. Em Março, Gianluca Busato, um empresário que se afastou da LN, juntou os grupúsculos separatistas na iniciativa de um “plebiscito electrónico” sobre a autonomia do Veneto — uma “grande sondagem” em que terão participado 2,3 milhões de pessoas. O governador do Veneto, Luca Zaia, da LN, “cavalgou” o movimento e propõe-se organizar um referendo “constitucional, legítimo e juridicamente inatacável”. O Governo impugnou a iniciativa junto do Tribunal Constitucional.

Os constitucionalistas apontam como única saída a obtenção de um “estatuto especial”, projecto defendido pelo PD e outras forças do Veneto. É patente a disputa entre Busato e Zaia pela liderança do movimento.

Diamanti explica-se
O politólogo foi surpreendido pelos alarmes que o inquérito gerou sobre o “risco separatista”. Na quarta-feira publicou novo artigo. Que argumenta? “Independência não significa, necessariamente, secessão. Para os cidadãos, não significa automaticamente separação, fuga da Itália.” Compara este com os inquéritos sobre a UE e o euro. Quando se coloca explicitamente a questão da “saída”, só uma minoria aprova o abandono da UE ou da moeda única.

A questão central é a relação com as instituições, a desconfiança na política e nos políticos, na UE, no governo e na oposição. “É um sinal de solidão profunda entre os cidadãos. E, francamente, isto parece-me muito mais inquietante do que qualquer reivindicação independentista.”

Esta conclusão de Diamanti merece uma observação. Terão os italianos desistido? Continuam a exprimir o seu protesto contra “a política e os políticos”, mas de uma forma singular. O governo de Matteo Renzi e do PD ainda não apresentou resultados. As reformas continuam bloqueadas no Parlamento. Mas as sondagens continuam a dar uma estável maioria ao PD, na casa dos 40%, e a mostrar uma elevada taxa de confiança no primeiro-ministro — sempre acima dos 50%.

E, no crítico Nordeste, uma sondagem de Julho (também de Diamanti), em plena vaga separatista e de insatisfação com o Estado, atribuía ao governo Renzi uma taxa de satisfação na casa dos 64%. É uma imaginativa forma de fazer antipolítica: “votar na independência” e dar um “voto de confiança” ao chefe do governo de quem esperam alguma coisa ou a quem dão o benefício da dúvida.

Assim é a Itália. E o real nunca é simples.

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