Um reino pouco unido e em crise de identidade vai a votos

Se Nigel Farage fosse primeiro-ministro, o Reino Unido ficaria fechado atrás de um muro erguido, simbolicamente, em Dover, a cidade que liga, por barco e TGV, a ilha britânica à Europa. Se Nicola Sturgeon leu bem Maquievel, muito em breve a Escócia deixa de fazer parte deste reino.

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O primeiro-ministro David e a sua mulher, Samantha Cameron, em campanha no Sudoeste de Inglaterra DAN KITWOOD/AFP
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Nicola Sturgeon, a líder do Partido Nacional Escocês, numa feira a comer algodão doce Paul Hackett/REUTERS
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Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) ADRIAN DENNIS/AFP

Mal começou a curta campanha eleitoral britânica, que começou quando o primeiro-ministro, o conservador David Cameron, pediu à rainha a dissolução do Parlamento, a 30 de Março, dois temas foram recorrentes: as possibilidades de a Escócia vir a ser, a médio prazo, um país estrangeiro, e de o Reino Unido deixar a União Europeia.

Na Escócia, e em menos de um ano, assistiu-se à ascensão do Partido Nacional (SNP), que tem no topo da sua agenda a independência. Foi o referendo à independência, realizado no ano passado e em que o ‘não’ ganhou por curta margem, que galvanizou o partido ao ponto de se tornar praticamente no partido único deste território nestas eleições – as últimas sondagens dizem que poderão eleger praticamente todos os 59 deputados atribuídos à Escócia no Parlamento de Westminster, roubando lugares que eram sobretudo dos trabalhistas.

A ideologia xenófoba, anti-imigração e isolacionista de Nigel Farage, líder do UKIP (Partido da Independência do Reino Unido), pôs na agenda eleitoral a presença do Reino Unido na União Europeia. Farage defende a ruptura política com Bruxelas, preservando apenas os acordos comerciais. Cameron, que já perdeu votos (e deputados e candidatos a deputado) para Farage, e que tem uma forte ala eurocéptica no partido, prometeu um referendo sobre a permanência na UE, em 2017.

Nas legislativas de quinta-feira, explica Tim Bale, professor de política britânica e europeia na Universidade Queen Mary de Londres e especialista em sistemas partidários e eleitorais, escolhe-se um novo Governo e define-se o lugar do Reino Unido no mundo.

O Reino Unido está a viver uma crise de identidade?
Este é um ponto importante destas eleições. Há uma crise de identidade na Inglaterra e alguns políticos, como Nigel Farage e os próprios conservadores, têm-na usado para recuperarem a ideia do nacionalismo, que alguns analistas defendem que é um sentimento recorrente, com dez ou 20 anos, mas que tem estado reprimido devido ao sucesso do país no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Os recursos, porém, são agora menores, e o nacionalismo inglês reemergiu, motivado pela ideia de que outras partes do Reino Unido beneficiam mais da despesa do governo do que a Inglaterra, que é quem produz a maior parte das receitas do Estado. Esta narrativa é aceite por muitos ingleses que consideram que os escoceses, os galeses e os norte-irlandeses estão a sugar a riqueza que a Inglaterra cria.

Mas essa disparidade não existiu sempre?
Existiu, mas havia compensações para a Inglaterra. A Escócia fornecia grande parte da força militar que ajudava a sustentar o império britânico e era o centro da economia quando éramos uma economia assente na indústria de manufactura, de transformação das matérias primas. Nos anos de 1980-90, o petróleo do Mar do Norte [escocês] ajudou a economia britânica. Quanto à Irlanda do Norte, muitas pessoas consideravam que a redistribuição da riqueza era um preço a pagar para derrotar o terrorismo [dos republicanos católicos, que pretendem reunificação da Irlanda] e para iniciar um processo de paz. O País de Gales era uma região essencial à manufactura, produzindo o carvão e o aço que alimentavam essa economia.

Só que essa economia desapareceu, o império colapsou e o processo de paz é dado como garantido.  E algumas pessoas ressentem-se da contribuição da Inglaterra para os outros países e territórios da união e são facilmente mobilizáveis para certas narrativas.

Se houvesse um referendo ao contrário, perguntando à Inglaterra se quer manter a união, qual seria o resultado?
Tem havido sondagens sobre o assunto que nos levam a crer que é possível imaginarmos os ingleses a votarem a favor de uma separação da Escócia e da Irlanda do Norte. Deixar ir o País de Gales é mais difícil, pois é considerado parte integrante desde o settlement inglês. Mas a atitude dos ingleses depende muito da dos escoceses. Se eles continuarem a dizer que podem, e preferem, estar sozinhos, pode muito bem acontecer que os ingleses lhes digam para partirem.

E o que querem os políticos escoceses? Um segundo referendo rápido?
Para o SNP, o melhor cenário é que estas eleições produzam um Governo conservador. Estão a fazer tudo para que isso aconteça, tornando as coisas muito esquisitas para os trabalhistas. Ofereceram aos trabalhistas um acordo [de coligação], mas que é um pacto com o diabo, pois dá aos conservadores argumentos para falarem nos riscos de o país se desintegrar. Há aqui muito jogo maquiavélico.

Os analistas que se debruçam sobre a questão da identidade explicam que a crise é fruto de um vazio ideológico. Concorda?
Não é por acidente que em grande parte da Europa estejam a surgir sentimentos nacionais. Isto coincide com o declínio da classe e da religião enquanto factores de identidade das populações. Criou-se um vazio que os políticos não souberam preencher e que permitiu que outras formas tribais de identidade emergissem.

Sabíamos que o Reino Unido era eurocéptico. Mas agora Cameron dá vários passos em frente e promete um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE se for reeleito.
Este agudizar das posições sobre a Europa tem a ver com desenvolvimentos no Partido Conservador e com as preocupações sobre a soberania do país que já existem há muito tempo. A partir de 1989, a estratégia britânica sobre a gestão económica choca com a orientação de Bruxelas. Muita gente no Partido Conservador tem uma visão híper-globalista. Quer isto dizer que acreditam que o futuro deste país estaria melhor preservado se se centrasse mais no mundo anglo-saxónico e não só. A UE é olhada como um travão a esta visão, que muitos consideram ser o caminho natural para o desenvolvimento do país. Essa corrente de pensamento olha para a UE como algo que já faz parte da História e que está esclerosado, e que nos está a impedir de realizar o nosso destino, que é desenvolver laços comerciais com a China, a Índia e os outros países emergentes.

Onde é que se situa o pensamento de David Cameron sobre o assunto?
Cameron ajustou-se a esta visão, apesar de ir dizendo que sair da UE não é boa ideia, até porque muitos apoiantes conservadores, sobretudo empresários, defendem que, pelo menos a curto prazo, ainda precisamos da UE. Cameron também está a ser arrastado para este [afastamento da Europa] pelo UKIP, que lhe pode roubar lugares no Parlamento. A forma de evitar que isso aconteça é adoptar algumas linhas de pensamento do UKIP, apesar de na minha opinião essa ser uma pobre linha de raciocínio – porque quanto mais os conservadores falam na UE ou na imigração, mais popular se torna o UKIP. Não faz sentido tentar dobrar o UKIP propagando as suas ideias.

O trabalhista Ed Miliband seria um primeiro-ministro mais europeísta e alinhado com as opções de Bruxelas.
Os trabalhistas têm uma posição mais realista e menos ideológica, que é a de que a UE tem defeitos mas que isso não é razão para correr os riscos inerentes a uma saída. Sobretudo quando permanecer na UE não exclui a opção de procurar laços comerciais com o resto do mundo.

Cameron também afastou o Reino Unido da arena política internacional. Retirou as tropas britânicas no Afeganistão, travou a possibilidade de haver uma intervenção militar ocidental na Síria e não se envolveu na mediação do conflito na Ucrânia, deixando o problema nas mãos da Alemanha e da França. Como explica esta retirada de cena?
Há três respostas. Primeiro, Cameron, como já vimos, ficou muito relutante em envolver-se em qualquer iniciativa que pudesse ser entendida como europeia. Segundo, não temos dinheiro e há o receio de que tenhamos esticado demasiado o orçamento das despesas militares, pelo que fomos obrigados a conter-nos e a pensarmos bem naquilo que realmente podíamos fazer. Finalmente, há o factor opinião pública que, depois do aventureirismo de Tony Blair, sobretudo no Iraque, se tornou bastante isolacionista. A opinião pública esqueceu a lição da I e da II guerras de que não podemos ignorar o que se passa no resto do mundo, porque podemos ser arrastados para os problemas. É uma questão estrutural, mas depois de 70 anos, as pessoas dão a paz como adquirida. Para elas, infelizmente, a Ucrânia é como a Checoslováquia, para usar as palavras proferidas por Neville Chamberlain [primeiro-ministro entre 1937-40] nos anos 30: é um país longínquo sobre o qual nada sabemos.

O tempo em que o Reino Unido era uma superpotência europeia acabou?
Acabou, segundo um Governo conservador. Se tivermos um Governo trabalhista teremos mais envolvimento em iniciativas europeias. Os trabalhistas perderam algum do idealismo pró-europeu que Tony Blair tinha em 1997, mas ainda há entusiasmo. Se houver mudança de Governo, creio que vamos ter mudanças [na política externa].

E vai haver mudança de governo?
O meu instinto diz que os conservadores ainda poderão conseguir, através de uma coligação, mesmo que minoritária. A minha calculadora diz outra coisa diferente. A formação do novo Governo vai ser difícil para qualquer dos lados. Não se sabe o que poderá acontecer, e se houver alguém que diga o contrário é porque é tolo.

 

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