Um estranho sentimento de angústia

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1. Devo começar por dizer que a saída do Reino Unido me toca pessoalmente, ajudando a explicar um estranho sentimento de angústia que teima em não desaparecer. Três das minhas netas exibem no seu passaporte o longo nome do país a que (também) pertencem: United Kingdom of Great-Britain and Northern Irland. Cresceram a viajar. Têm uma avó em Lisboa e uma “grandma” em Londres. São bilingues. Pertencem a uma geração verdadeiramente europeia, como os seus pais, em que a nacionalidade conta pouco. Continuará tudo igual, mas houve alguma coisa que mudou.

Como portuguesa e europeia, partilho modestamente com o grande historiador de Oxford, Timothy Garten Ash, aquele sentimento que magnificamente descreveu na sua coluna do Guardian. Basta trocar a nacionalidade. “Como um inglês europeu, esta é a maior derrota da minha vida política.” Dediquei boa parte da minha vida profissional à Europa. Guardo as memórias dos seus grandes momentos ou dos seus relativos fracassos. Vi, ao vivo, os grandes protagonistas da sua história mais recente. A sua grandeza ou a sua pequenez. Acompanhei as infindáveis negociações que se prolongavam noite fora para encontrar uma solução que não deixasse ninguém de fora. No Conselho Europeu de Maastricht, em Dezembro de 1991, Helmut Kohl gastou a sua imensa paciência a convencer Mitterand que era preciso ceder alguma coisa a John Major para permitir aos britânicos aceitar o novo tratado europeu. Mas também estava em Nice, em 2000, durante a mais longa cimeira europeia de que me lembro, quando Jacques Chirac lembrou aos jornalistas (e a Gerhart Schroeder, o então chanceler alemão social-democrata) o passado da Alemanha e, consequentemente, a obrigação de aceitar a paridade entre Paris e Berlim na nova repartição de votos no Conselho para preparar o alargamento. A História nunca abandonou totalmente a sala dos Conselhos Europeus, mas estava lá para lembrar o sucesso extraordinário da integração europeia.

2. Dir-me-ão que a Europa mudou radicalmente desde então, graças à globalização. É verdade. Estamos a viver um novo período da história europeia em que a crise financeira abriu as portas a uma acelerada transformação da União Europeia, com a emergência da Alemanha como o país que se passou a considerar “normal” (dizia Schroeder), com direito a agir como as outras duas potências europeias, a França e o Reino Unido. Já passaram sete anos sobre o início da crise. Sabemos que Berlim decidiu aproveitá-la para reconstruir a zona euro à sua imagem e semelhança, mas não sabemos ainda com a necessária clareza o que quer fazer da Europa. Ironicamente, o euro, que foi criado para amarrar a Alemanha unificada à integração europeia, passou a ser o principal instrumento do seu poder sobre a Europa. Quando o Muro caiu li o livro extraordinário que Garton Ash dedicou à Alemanha (conhecia as duas muito bem), In Europe’s Name. Aprendi muito do que precisava de saber sobre a “questão alemã”, que regressava para o bem ou para o mal ao centro da integração europeia. Sempre acreditei que o Reino Unido, com as suas particularidades por vezes incómodas, era uma parte indispensável da União Europeia. E ainda mais, quando a geopolítica regressou à Europa com estrondo, a relação transatlântica teve de sobreviver a várias crises, a União cresceu até à dimensão do continente e a cena internacional mudou radicalmente. Acompanhei a forma como os europeus procuraram adaptar-se a essa nova realidade mundial, nem sempre fácil, na qual as posições do Reino Unido sempre foram essenciais para ajudar a construir uma Europa aberta ao mundo ou para manter a ponte entre os dois lados do Atlântico, chovesse ou fizesse sol.

3. A Europa mergulhou numa crise existencial sem precedentes. A Alemanha, mesmo que muitas vezes por linhas tortas, foi assumindo um papel de liderança indisfarçável, com aspectos negativos e positivos. Em sentido contrário, a França foi perdendo a sua força e, em 2005, mostrou até que ponto tinha dificuldade em aceitar o seu novo lugar na Europa, rejeitando em referendo a Constituição europeia (que nasceu por iniciativa alemã). Nada do que aconteceu nesta eterna demanda europeia atingiu de tal forma a sorte da Europa como a saída do Reino Unido. Não apenas porque é uma potência europeia com influência mundial. Mas porque o seu papel de terceiro pilar do eixo franco-alemão era indispensável para manter o equilíbrio de poder entre Paris e Berlim, acrescentando uma dimensão atlântica fundamental para que outros países se sentissem identificados com o consenso europeu. De alguma maneira, continuou a cumprir em tempo de paz e de união o seu papel histórico de impedir que uma força totalitária ou imperial dominasse o continente.

4. Se foram os sectores mais afectados pela globalização que votaram pela saída, como refere ainda o historiador de Oxford, serão eles de novo a sofrer as consequências de uma inevitável contracção da economia. Boris prometeu-lhes menos imigrantes e Cameron tinha conseguido negociar com Bruxelas condições especiais para restringir a presença dos cidadãos europeus. A campanha do Leave convenceu os britânicos de que os milhões pagos a Bruxelas iriam direitinhos para o SNS. Mas a vida tem destas coisas: se o Reino Unido quiser manter o acesso ao Mercado Único (fundamental para a sua economia), vai ter de pagar de novo a Bruxelas e não poderá usufruir de qualquer limite à circulação dos cidadãos europeus. É apenas um pequeno exemplo da manipulação dos factos. A economia britânica sempre aberta ao mundo entregou o controlo de muitas das suas indústrias a empresas estrangeiras e isso nunca lhe provocou nenhum mal, dada a força da City e de um sector de serviços altamente competitivo. Não é certo o que lhes acontecerá agora. Lemos nos jornais a intenção de muitas grandes empresas que vão mudar de armas e bagagens para o lado de lá da Mancha. É certo que haverá consequências, mesmo que não saibamos ainda a sua dimensão. Farage é um nacionalista e tem apenas um deputado em Westminster. Boris é um conservador elitista que virou populista, um antigo jornalista que exibe até ao exagero os tiques de uma certa elite britânica que gosta de ser original. Ainda não disse o que tenciona fazer ao seu país. Terá muita dificuldade em apresentar alguma coisa que tranquilize os britânicos que rejeitaram a Europa. Falta acrescentar que, ao contrário do que se dizia por cá sobretudo quando o Remain era ainda o resultado mais provável, não foi a esquerda que saiu vitoriosa. Jeremy Corbyn é tão europeísta como Cameron, mesmo que a sua rejeição da Europa seja diferente. O seu Labour, ao contrário do PS, é uma espécie de dois em um: tem trabalhistas de centro-esquerda, que dominaram o partido desde Blair, e trabalhistas à Bloco de Esquerda, que ressuscitaram do passado, que sempre combateram a Europa, o capitalismo, a frota nuclear e o imperialismo europeu. Corbyn acordou tarde e a más horas. Não conseguiu dizer o que não pensa, deixando a defesa apaixonada e sem ambivalências da Europa a Gordon Brown ou ao actual mayor de Londres. É um grande derrotado. Até porque muitos dos votos trabalhistas saíram directamente para o Leave. O mesmo já aconteceu em França e noutros países europeus. Há sobejas razões de angústia quando se contempla o que pode acontecer num país que tanto podia ter votado na saída ou na permanência. A democracia é assim. Pior que tudo isto, apenas o desnorte europeu, resumido numa frase de Martin Schulz: “Esta não é uma crise da União Europeia”.

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