Adeus Lenine, olá Wall Street

Para as grandes multinacionais europeias e norte-americanas, a Ucrânia, o novo aliado a Leste, pode ser uma oportunidade de negócio.

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MIneiros na Ucrânia: a Arcelor Mittal prometeu investimentos no valor de 1,1 mil milhões de euros Baz Ratner/REUTERS

“Esta é a altura certa para investir na economia da Ucrânia.” A frase é do director do Departamento de Relações Internacionais do Banco Central ucraniano, Sergei Kruhlik, citada num comunicado da instituição de Abril intitulado “Investidores estrangeiros apoiam activamente a Ucrânia na implementação de reformas estruturais”. Por esta altura, assinalava-se o primeiro aniversário do conflito no Leste do país, que para além dos elevados custos humanos deixou a economia de rastos.

Em dois anos, o PIB caiu 23% - uma queda semelhante à da economia grega mas num período muito mais curto -, a dívida pública disparou para 158%, o hrivinia desvalorizou 70% face ao dólar e a inflação está nos 46%, com tendência de subida. A reestruturação da dívida aos credores internacionais já não é sequer alvo de debate e o default foi evitado no último minuto na sexta-feira, depois do pagamento de 120 milhões de dólares.

Porém, o “apetite” por parte dos investidores estrangeiros na economia ucraniana é evidente. Ainda na última semana a Arcelor Mittal, o gigante mundial da exploração mineira e siderurgia, prometeu investimentos de cerca de 1,2 mil milhões de dólares (1,1 mil milhões de euros). Os norte-americanos da Cargill, da área da agricultura e alimentação, prometeram injectar 100 milhões de dólares (91 milhões de euros) na construção de um novo terminal portuário em Iuzhnii, no Mar Negro. Este mês, o Canadá e a Ucrânia assinaram um acordo do comércio livre, que prevê a redução de taxas aduaneiras para a quase totalidade das trocas entre os dois países.

A corrida aos investimentos norte-americanos e europeus na Ucrânia teve o marco maior na assinatura do Acordo de Associação entre Kiev e a União Europeia (UE) - o mesmo que foi recusado por Viktor Ianukovich e que desencadeou os protestos na Praça da Independência no final de 2013 e que conduziram à sua queda, em Fevereiro do ano seguinte. O novo Governo, composto essencialmente por políticos pró-europeus, fez da parceria uma das grandes prioridades, tornando-o um símbolo da aproximação da Ucrânia ao Ocidente.

Mas a entrada em vigor das cláusulas referentes ao comércio livre com a UE - que implicam a aprovação de inúmeras reformas destinadas a remover barreiras aduaneiras e regulamentos em vigor - só entrarão em vigor no início de 2016.

Desde a queda de Ianukovich que as mudanças no país se operam a uma velocidade vertiginosa, mas seguindo sempre a mesma lógica - afastamento da esfera de influência de Moscovo e aproximação ao Ocidente. Se no panorama geopolítico a tendência tem sido evidente, também está a ser mimetizada no plano económico.

300 privatizações na calha
Muito do trabalho dos novos governantes ucranianos tem sido o de atrair investimento empresarial, sobretudo europeu e norte-americano. O primeiro-ministro, Arseni Iatseniuk, tem liderado várias comitivas com esse fim, a última das quais culminou no encontro inaugural do Fórum Empresarial EUA-Ucrânia em Washington, há quase duas semanas, e no qual também esteve o vice-Presidente norte-americano Joe Biden. Em Maio foi aprovado pelo Governo um processo de privatizações que vai incluir quase 300 empresas públicas da área agrícola, mineira e até um hotel em Kiev, e à qual está vedado a entrada de empresários russos.

“A ideia é substituir a Rússia como sócio comercial”, diz ao PÚBLICO  Alberto Priego, professor de Relações Internacionais na Universidade Pontifícia de Comillas em Madrid. A tarefa não se adivinha fácil. A Rússia é o principal mercado tanto para as exportações (24,2%) como para as importações (29,6%) ucranianas. As duas economias “são altamente complementares, tendo feito parte de uma única entidade durante vários séculos e partilham padrões da industrialização soviética”, nota o historiador Richard Sakwa no livro Frontline Ukraine: Crisis in the Borderlands.

No final de Março, as autoridades ucranianas receberam um aliado de peso para a captação de investimento. George Soros disse, em entrevista a um jornal austríaco, estar disponível para investir mil milhões de dólares na Ucrânia. A indicação do influente magnata de origem húngara funciona quase como um barómetro obrigatório para qualquer investidor, mas a “dica” de Soros foi acompanhada de uma nuance – o apoio da UE é imprescindível. “É necessário um seguro de risco político”, afirmou na altura.

Para isso, a UE e o FMI têm pressionado o Governo a acelerar um conjunto de reformas para tornar o país mais acessível ao investimento externo, que passam pela flexibilização do mercado laboral, redução de burocracia e diminuição da presença estatal na economia.

Os governantes ucranianos têm compreendido a mensagem e muito dos seus esforços tem ido no sentido de reformar o país para ir ao encontro das expectativas ocidentais. O relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre o clima de investimento no país, publicado em Maio, saudava os “progressos tangíveis” realizados por Kiev para “afastar o Governo ucraniano e a economia das estruturas altamente centralizadas e corruptas deixadas pela era Ianukovich e herança do sistema soviético”. Porém, “é necessário fazer mais esforços”, concluía o gabinete de Assuntos Económicos.

Soros sabia bem do que estava a falar. “A Ucrânia é um cruzamento de caminhos entre a Rússia e a Europa e grande parte dos abastecimentos energéticos passam por ali”, observa Alberto Priego. A imprensa americana tem especulado sobre a oportunidade criada pela crise ucraniana para o boom energético dos EUA. A estratégia de pôr fim à dependência energética europeia da Rússia pode ser a peça que faltava para que Washington levante a proibição, em vigor há quatro décadas, das exportações de recursos energéticos, sugeria recentemente a revista Forbes.

A chave aqui é a exploração do gás natural liquefeito, cuja produção aumentou mais de 35% nos últimos oito anos nos EUA. Ao mesmo tempo, a multinacional norte-americana Frontera anunciou este mês que vai financiar a construção de um novo terminal para gás natural na Ucrânia.

Mas o interesse na Ucrânia não se esgota na energia. É conhecido o epíteto de “celeiro da União Soviética” atribuído ao país - é lá que está concentrado quase um terço da área agrícola fértil do planeta. O país é o terceiro maior exportador de milho e o quinto de trigo. “A estabilidade alimentar da Europa depende da estabilidade da Ucrânia”, considera Priego.

Um estudo do ano passado do Oakland Institute - um think-tank independente dos EUA focado em questões ecológicas e agrícolas - alertava para o “aumento de controlo estrangeiro da economia, assim como um aumento da pobreza e desigualdade” na Ucrânia. No que toca ao sector, a conclusão era de que a intensificação do investimento estrangeiro “irá resultar provavelmente na expansão das aquisições em larga escala de terrenos agrícolas por empresas estrangeiras”.

Alberto Priego considera o interesse das multinacionais alimentares na Ucrânia como algo positivo, apesar de reconhecer que “é necessário ver que repercussão terá no bolso dos cidadãos”. Ainda assim, reforça o optimismo: “Esse futuro prometedor para as empresas deverá ter uma correlação com o futuro dos cidadãos da Ucrânia.”

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