Ucrânia: as três dimensões do conflito

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Ao tentar perceber a crise ucraniana podemos encontrar três pistas de pensamento. A primeira é a revolta contra um sistema de poder autoritário, corrupto, ineficaz e que culminou na submissão a Moscovo. O segundo plano de abordagem é “a disputa da Ucrânia” entre a Rússia e o Ocidente. Lembre-se que o movimento “Euromaidan” estalou no fim de Novembro com a brutal pressão de Vladimir Putin sobre Viktor Ianukovich para impedir a adesão de Kiev à Parceria Oriental da UE. Por fim, está sempre presente a diversidade regional, histórica, cultural, religiosa e linguística da Ucrânia, que se traduz em mentalidades e interesses por vezes opostos entre a Ucrânia Ocidental e a Oriental — para não falar na Crimeia — e que se pode resumir numa fórmula: “Há várias Ucrânias.”

A combinação destes factores, a escalada dos confrontos em Kiev e a radicalização de sectores nacionalistas levaram a falar no risco de “desintegração da Ucrânia” e, até, na ameaça de guerra civil — uma “guerra por procuração” entre Moscovo e a aliança ocidental, travada por ucranianos. Um fantasma simbólico na Europa de 2014, ano do centenário da I Guerra Mundial.

O que diz o mapa
A Ucrânia é um país à procura de uma identidade ou combinando várias identidades. O termo ukraina quer dizer fronteira ou confim. Um país na encruzilhada de impérios está sujeito a muitas vicissitudes. O actual território ucraniano passou por vários domínios: o Estado polaco-lituano, a Rússia czarista, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. Por fim, Estaline recompôs à sua maneira este puzzle político-geográfico. Na Ucrânia Ocidental prevalece a herança austríaca e há uma forte ligação cultural e económica com a Polónia. A Ucrânia Oriental é russófona e está umbilicalmente ligada à Rússia. A Crimeia foi um território russo desde o século XVIII mas foi “oferecido” à Ucrânia por Nikita Khruschtov em 1954. O “país central”, onde está Kiev, é uma mistura disto tudo.

Os contrastes da Ucrânia são patentes mas há grande interdependência entre as regiões. Identidades culturais diversas não significam a inexistência de identidade nacional — ela existe. O Donbass, coração do Leste ucraniano, quer manter laços estreitos com Moscovo mas não quer ser integrado na Rússia. A região ocidental quer, inversamente, que a Ucrânia se afaste de Moscovo, mas não a secessão. Em si mesmo, o mapa não é determinante. Mas reflecte-se no conflito: na Ucrânia Oriental, por exemplo, há crescente oposição a Ianukovich mas não hostilidade à Rússia.

A dimensão geopolítica
A Polónia tem sido, desde o fim da URSS, o principal advogado da integração da Ucrânia na esfera ocidental. Considera que a independência de Kiev perante Moscovo é uma garantia da sua própria segurança. A tese de Zbigniew Brzezinski — polaco de nascimento — segundo a qual a Ucrânia determina a natureza da potência russa é partilhada em Varsóvia: “Sem Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império euro-asiático.”

Hoje, após o previsível fiasco da integração da Ucrânia na NATO, esta tese tem um acolhimento mitigado na Europa e nos EUA. Kiev não tem interesse em cortar os laços com a Rússia, não o poderia sequer fazer e, por isso, tal não lhe deve ser pedido.

Inversamente, é Putin que retoma o tema. Terá dito a Bush, em 2008, que “a Ucrânia não é sequer um Estado”. Vê-a como uma parte integrante da Rússia que foi usurpada em 1991. O seu horizonte estratégico prevê integrar a Ucrânia numa união aduaneira dominada por Moscovo. Definiu uma linha vermelha: a Ucrânia não pode deslocar-se — mesmo sem NATO — para a esfera económico-política da UE. Por isso transformou a questão da Parceria Oriental num confronto geopolítico.

O regime político
Moscovo não quer desagregar a Ucrânia, quer mantê-la fraca, dizem analistas. A hipótese de criar um Estado federal não desagradaria a Moscovo. Daria às regiões russófonas um direito de veto em relação à UE. E permitiria, por outro lado, à maioria russa da Crimeia integrar-se mais na Rússia.

A consequência lógica do pensamento de Moscovo é o condicionamento da vida política em Kiev. Explorará todas as vulnerabilidades políticas, económicas e energéticas ucranianas para barrar o caminho a um regime pró-ocidental ou, no mínimo, para bloquear as suas opções internacionais. Neste campo, os meios e o investimento político de Moscovo são mais fortes do que os da UE ou dos EUA. E tem uma vantagem: a oposição ucraniana está largamente desorganizada.

Em contraponto, há novidades. Anotavam em Janeiro dois analistas polacos, Wojciech Kononczuk e Tadeusz Olszanski: “A experiência das últimas semanas marcou a emergência de uma nova elite social na Ucrânia, preparada para lutar pelos seus interesses ainda que não plenamente capaz de os articular. Esta nova geração tem pouca confiança nos políticos e na política.”

Para os mesmos autores, Ianukovich é — ou era — o dirigente ideal para Moscovo. Não por ser pró-russo mas por assegurar o fracasso. “Uma Ucrânia autoritária, corrupta, opaca e politicamente instável, incapaz de fazer as reformas estruturais de que desesperadamente precisa, é a melhor garantia de que o país ficará fora da órbita da UE — ou até na esfera de influência russa.”

Quanto mais disfuncionais forem as instituições políticas e mais caótica estiver a economia mais instrumentos de pressão dispõe Moscovo. Após a “revolução laranja” de 2004, a rivalidade entre o Presidente Viktor Iuchenko e a primeira-ministra Iulia Timochenko paralisou as instituições e degradou a Ucrânia, levando à posterior vitória de Ianukovich.

É necessária uma observação final. As potências não determinam tudo. Russos ou ocidentais têm um limite: só podem influenciar a Ucrânia a partir das opções dos ucranianos. Estes têm a última palavra: manter ou afastar um regime autoritário e corrupto. Também deles depende dotarem-se de instituições funcionais. Repita-se: caos, a corrupção e o bloqueio das reformas são o principal factor da dependência. Foi o que os últimos anos ilustraram.

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