Turquia: autópsia de um golpe falhado

As únicas notícias positivas desta aventura lamentável é a ausência de uma guerra civil no País e a quase impossibilidade da Turquia aderir à União Europeia.

O tema da técnica do golpe de Estado é “politicamente incorreto” na Europa e excluído deliberadamente do debate público. Ressalva-se, entre nós, a excelente resenha histórica e sociológica de Luís Salgado de Matos “Como Evitar Golpes Militares” (Ed. 2008, do ICS). Já no universo anglo-saxónico, num círculo restrito de especialistas da Ciência Política e Militar, foram publicados diversos estudos, dos quais se destacam dois: o clássico do politólogo Edward Lutwak “ Coup D`etat, a Pratical Handbook” (editado em 1968 e em que Portugal era um “case study”, havendo uma edição de 2016); e o livro de Naunihal Singh “Seizing Power” (2014), valiosa obra de pesquisa de cunho sociológico.

As imagens surreais televisionadas no dia 17 de julho, envolvendo confrontos de rua com carros de combate e caças-bombardeiros em duas cidades turcas fizeram-nos antever, já pelas 11h.30m em Lisboa, que os golpistas tinham violado os principais cânones técnicos para um “putsch” vitorioso e que o seu golpe iria provavelmente falhar ou mergulhar o País na guerra civil.

Erros ostensivos. Foram cinco, os “erros de manual” cometidos pelos conspiradores. O primeiro consistiu na incapacidade de neutralizar os chefes do Executivo, de forma a “decapitar o poder”. O Primeiro-Ministro logrou assegurar ao País que estaria a conter o Golpe e Erdogan não só apelou à resistência dos seus partidários, como acedeu a uma proposta do General Dundar (comandante do 1º Exercito em Istambul) para aterrar na cidade e aí assumir a liderança. Ora, os rebeldes, não só chegaram ao hotel onde o Presidente passava férias com uma hora de atraso, mas também não neutralizaram o avião onde viajava porque o confundiram com um voo comercial. A segunda falta consistiu na ineptidão para controlar as comunicações televisivas e eletrónicas (mormente o satélite Turksat). Os rebeldes ocuparam o principal canal de televisão (TRT) mas deixaram outros a funcionar, tendo sido através da CNN Turk que Erdogan apelou ao povo via “Facetime”. Por seu turno, o Skype, o Whats Up e o Viber funcionaram e permitiram uma mobilização contra o Golpe. Já o terceiro erro consistiu no fracasso dos golpistas em criarem a perceção geral do seu sucesso e controlo da situação: a sua proclamação foi pobre, os líderes do Governo e da oposição puderam dirigir-se ao País contra a revolta e nenhuma junta militar com rostos definidos assumiu funções como novo poder.

O quarto erro foi o da dessintonia com o povo. Os velhos golpes militares na Turquia tinham êxito porque eram desferidos por um alto comando unido contra governos impopulares. Ora, Erdogan obteve uma larga maioria de votos desde 2002 e logrou, não só mobilizar os seus partidários (com ajuda dos muezzin nas mesquitas) como obter apoio nos próprios partidos e jornais de oposição laica. Quando confrontados com o povo nas ruas, os militares não tiveram nem comando nem estômago para dispersar violentamente os manifestantes e evitar que pulassem para cima de tanques isolados e sem cobertura de infantaria. A quinta falha foi a incapacidade de garantir a neutralidade de unidades militares móveis e a submissão das forças policiais. O alto comando foi preso pelos golpistas mas os chefes dos corpos de exército lealistas e as forças de elite da polícia (os QG da polícia e serviços de segurança foram atingidos mas não ocupados) reagiram duramente, passando os militares a lutar consigo próprios.

O Golpe confrontou-se, ainda, com outras insuficiências: poucas forças rebeldes envolvidas e compostas por recrutas enganados; operações lançadas não de madrugada, mas ao cair da noite com elevado tráfego e gente na rua; e falta de planeamento e coordenação.

Onze de março à turca? Um golpe tão deficiente só pode ter uma explicação: foi espicaçado pelo próprio Governo para poder lançar uma “caça às bruxas”. Contrariamente a certas teorias da conspiração, não foi um pronunciamento “coreografado” mas sim estimulado por Erdogan quando fez saber junto do Supremo Conselho Militar (o qual se ocuparia do tema em agosto), que iriam ser emitidos mandatos de detenção de oficiais supostamente conotados com o movimento oposicionista do exilado Gülen. Pressentindo uma purga iminente algumas centenas de oficiais (“gulenistas” e laicos,) ter-se-ão precipitado num golpe apressado e caído uma ratoeira: Erdogan não sabia o momento do golpe, mas preparara-se para ele. O facto de haver detenções e demissões nas forças armadas, polícia, juízes, escolas e administração envolvendo 60.000 pessoas demonstra que as “listas negras” já estavam preparadas. No fundo, uma situação que lembra o 11 de março de 1975, em Portugal, onde uma operação de inteligência marxista lançou o pânico nos oficiais afetos a Spínola, com a iminência de uma suposta “matança da Páscoa”, levando-os a um golpe irrefletido, que foi o pretexto para purgas de oficiais e civis, muitos dos quais nada tinham a ver com o putsch falhado.

As únicas notícias positivas desta aventura lamentável é a ausência de uma guerra civil no País e a quase impossibilidade da Turquia aderir à União Europeia. De resto, Ancara não só se quedou com um exército enfraquecido em face dos curdos e o Daesh, mas ficou também mais isolada (com relações tensas com a Rússia, Irão, EUA e a possibilidade de ser expulsa do Conselho da Europa se punir retroativamente os golpistas com pena de morte). Ficou, ainda, agrilhoada a um “sultanismo eletivo” e conflitual dentro da NATO que só pode augurar o pior.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa

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