Turquia: a grande “guerra civil islâmica”

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1. Na imprensa turca há títulos apelativos, como “A escalada da guerra civil islâmica no Estado turco” ou “A mãe de todas as guerras”. Trata-se do confronto entre o primeiro-ministro, Tayyip Erdogan, líder do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), e o mais forte movimento religioso e cultural turco, o Hizmet (serviço) de Fethullah Gülen, um pensador sufi que reside nos Estados Unidos desde 1998. Não é uma guerra ideológica. O que está em causa é o controlo do Estado e o modelo democrático turco. Até 2010, a luta era entre o AKP e os kemalistas radicais. “Domesticado o exército”, a luta desloca-se para o interior da grande nebulosa do AKP e aliados.

“A maioria dos estrangeiros pena em compreender a exacta natureza desta batalha, que também confunde os próprios turcos”, escreve o diário Hurryiet. O politólogo turco-americano Soner Cagaptay, acérrimo crítico de Erdogan e de Gülen, aponta o nó do problema. Sublinha que “o regime de Erdogan se tornou crescentemente autocrático”, alienando o apoio de Güllen, um aliado do AKP que contribuiu decisivamente para a sua vitória eleitoral em 2002. Acrescenta que, se os ocupantes do Parque Gezi e os gulenistas pouco têm em comum, são hoje, de facto, os movimentos que partilham o objectivo de “resistir ao poder quase absoluto de Erdogan”.

No dia 17 de Dezembro, um procurador de Istambul ordenou dezenas de detenções por corrupção em concursos públicos, atingindo personalidades próximas do AKP, incluindo os filhos de três ministros que foram forçados a demitir-se. A resposta de Erdogan foi fulminante, tomando medidas para subordinar a magistratura ao governo. Seguiram-se conflitos com o Conselho Superior dos Magistrados e com o Tribunal Constitucional. Três centenas de polícias e numerosos magistrados foram afastados das funções. Erdogan sobrepõe a legitimidade eleitoral à da Justiça: “Na Turquia é o povo quem decide.”

Há duas versões em confronto, assinala o analista Mustafa Akyol. A primeira, de Erdogan, qualifica o “17 de Dezembro” como “tentativa de golpe” contra o AKP. A segunda afirma que a investigação judicial demonstrou que o AKP se tornou corrupto e que usa a versão de “golpe” para desacreditar a investigação.

2. Entre Gülen e Erdogan, há uma divergência de raiz e uma posterior convergência. Os fundadores do AKP — Erdogan, o Presidente Abdullah Gül e o vice-primeiro-ministro Bülent Arinç — provêm da corrente do “islamismo político” e do movimento “Visão Nacional”, de Necmettin Erbakan, primeiro-ministro demitido por imposição militar em 1998. A “Visão Nacional” assume tons anti-ocidentais e pan-islâmicos. Tem algumas analogias com a Irmandade Muçulmana.

Gülen é seguidor da tradição do pensador sufi Said Nursi (1878-1960), que punha o acento tónico na moralidade e não na política. Nos anos 1970, cria um movimento que concentra os esforços na educação e na conciliação entre fé e razão. Com uma visão pró-ocidental, volta as costas ao islão árabe. Os seus adeptos nunca votaram nos partidos islamistas de Erbakan, preferindo-lhe forças conservadoras laicas. Aceitava o Estado laico de Ataturk, opondo-se ao laicismo radical na sociedade. Os militares perseguiram-no porque incentivava os adeptos a entrarem nos organismos do Estado, ocupando posições relevantes na justiça, no ensino ou na polícia. O exército estava-lhes rigorosamente vedado.

O fracasso de Erbakan levou ao abandono do islamismo político pelos fundadores do AKP. Gülen exerceu uma influência fundamental nessa reconversão e na opção europeia do AKP. Os gulenistas, uma vasta elite moderna, desempenharam depois um papel central na consolidação do AKP e na liquidação da tutela dos militares sobre a política, em parte graças aos magistrados. O procurador que agora acusou figuras do AKP é o mesmo que fez a instrução do processo Ergenekon.

Suprema ironia: antes, era o AKP a denunciar o “Estado profundo” — ou seja, militares, burocratas e juízes kemalistas. Hoje, é Erdogan a denunciar o “Estado oculto” dos gulenistas. Estes não negam a sua importância dentro do Estado. Entraram por competência, dizem. A dúvida é outra: servem primacialmente o Estado ou servem a congregação, o Hizmet.

3. A “guerra” está aberta e as pontes parecem cortadas. Em Novembro, Erdogan anunciou o encerramento das “escolas preparatórias” onde os estudantes preparam o concurso de entrada na universidade. São uma fonte de financiamento do movimento gulenista e uma oportunidade de recrutamento. O “17 de Dezembro” parece uma resposta a essa declaração de guerra. A maioria dos analistas não põe em causa a veracidade das acusações de corrupção. Mas interrogam-se: porquê neste momento?

Erdogan percebeu que os polícias e magistrados gulenistas acumularam provas contra os seus homens. “Parece ter concluído que a sua sobrevivência política depende do saneamento dos gulenistas do aparelho de Estado”, escreve o analista Halil Karaveli.

Erdogan está enfraquecido pelo anno horribilis de 2013, em que sofreu desaires seguidos na política externa, da Síria ao Egipto, e foi, pela primeira vez, desafiado nas ruas — o movimento do Parque Gezi, em Maio e Junho. Não admite limites ao seu poder. A sua meta é a Presidência da República, substituindo o regime parlamentar pelo presidencialismo. Se vencer o desafio, poderá dirigir a Turquia até 2024. As eleições presidenciais são em Agosto. Mas antes delas há as municipais de Março, que ele transformou num plebiscito para restaurar a sua autoridade.

4. A equação política é muito mais complexa. Erdogan deu sinais de querer uma aliança com os militares contra Gülen. Pelo menos, admitiu a repetição dos julgamentos dos casos Ergenekon e Balyoz que decapitaram as Forças Armadas, insinuando a parcialidade dos juízes. Os militares logo aproveitaram a deixa denunciando o “complot contra o exército”. Será possível fazer engolir esta opção ao AKP? E que alianças fará Gülen para se defender? Especula-se. Há sinais claros de divisão no AKP. Bülent Arinç tomou posições divergentes das de Erdogan — sobre a repressão dos ocupantes de Gezi ou no ataque às escolas de Gülen.

Há, por fim, uma figura discreta e consensual: o Presidente Abdullah Gül. A sua visão da Turquia — da concepção de democracia à opção europeia — é cada vez mais distante da de Erdogan. E faz questão em o mostrar. Em Dezembro apelou a que as investigações da corrupção fossem levadas até ao fim. Esta semana defendeu a independência da Justiça e o equilíbrio dos poderes. A democracia não se reduz às eleições, frisou. Se puder, tenciona recandidatar-se.

Henri Barkey, um grande conhecedor da Turquia, admite que pode haver dois perdedores nesta “mãe de todas as batalhas”— Erdogan e Gülen — e talvez um real vencedor, Abdullah Gül.
 
 
 

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