Trump – o nosso sombrio futuro?

A América terá que reformar o seu sistema político e adaptar-se para conter o futuro que Trump simboliza.

Em 2009 publiquei, com Marcin Zabarowski, “O Momento Obama”, no qual argumentava que o seu conceito de “humanidade comum” poderia ser o princípio para uma ordem internacional baseada em normas, capaz de garantir uma globalização mais inclusiva. Na apresentação do livro, James Steinberg, então sub-secretário de Estado de Hillary Clinton, disse esperar que, mais do que o momento, esta fosse a era Obama.

O que está em jogo nas atuais eleições americanas é um teste ao nosso futuro: estaremos de facto na era Obama ou na era Trump?

A megatendência mundial de empoderamento dos indivíduos, consequência da emergência de uma classe média global, com capacidade autónoma de intervenção política graças às tecnologias de informação, facilita a interconexão entre os cidadãos e a convicção de muitos de que os problemas do mundo são comuns.

Mas este empoderamento individual coincide com uma perceção de declínio das classes médias dos países ocidentais, que olham com angústia a emergência de novas potências, nomeadamente a China, e da sua classe média – o que levou Moisés Naim a falar de choque das classes médias. São cidadãos que, perante a estagnação do seu nível de vida, receiam pelo futuro dos seus filhos, receios agravados pela crise financeira de 2008 e por uma convicção generalizada de que "não há alternativas" no atual sistema partidário, criando espaço para o fortalecimento de novas correntes políticas.

Donald Trump, com uma retórica ultraconservadora anti-establishmentanti-imigrantes e islamofóbica, a que se junta um fascínio pelo nacionalismo autoritário de Putin, é o candidato de um significativo movimento de opinião nos Estados Unidos, distante da elite da costa Leste. Trump cavalga uma ansiedade popular real, afirmando que vai restabelecer a hegemonia americana e, assim, garantir um futuro melhor para a sua classe média.

A ascensão de Donald Trump é em tudo semelhante aos movimentos que estamos a ver crescer, com horror, na Europa: já estão no poder na Hungria e na Polónia, impulsionaram o "Brexit" e são representados em França por dois dos três candidatos com mais hipóteses de estarem na segunda volta das eleições presidenciais: Nicolas Sarkozy e Marine Le Pen.

A reemergência do nacionalismo identitário, um pouco por toda a parte, acompanhada pela crise das democracias europeias e do seu projeto de integração, a consolidação do sistema autoritário na Rússia, a hipótese da emergência de uma corrente nacionalista na China, aumentam as probabilidades de um futuro sombrio de involução democrática, desintegração e mesmo guerra. A eventual, mas improvável, vitória de Trump seria um forte elemento de aceleração dos fatores de desintegração, dando ânimo ao nacionalismo e aos populistas que fazem do medo do outro a sua bandeira. Se, como indicam as sondagens, Trump perder, a corrente que ele representa nestas eleições, de forma tão incompetente, não irá desaparecer.

A vitória de Hillary Clinton não representará o fim dos indignados progressistas. Como a campanha de Bernie Sanders mostrou, cresceu na América uma corrente progressista que exige um sistema mais participativo, mais próximo dos 99% da população americana e mais distante do 1% cujos interesses têm dominado os partidos tradicionais.

Perante o peso do lobbying e dos grupos financeiros, a influência dos eleitores nas decisões políticas é mínima. Esta discrepância foi tema da campanha de Bernie Sanders. A 31 de agosto, Hillary Clinton tinha já recebido 795 milhões de dólares de donativos diretamente para a sua campanha, enquanto Trump contabilizava 403 milhões. Mas as grandes empresas financiam também as campanhas de forma indireta, através dos comités de ação política, em montantes que ultrapassam os mil milhões de dólares. Este nível de financiamento, sem limites, desvirtua a política e acaba por corromper os políticos.

O problema é que Hillary Clinton terá dificuldades em dar respostas às ansiedades de quase um terço dos americanos que consideram, segundo o World Values Survey, que o governo do seu país “não é nada democrático” e não é provável que dê continuidade à regulação do capital financeiro iniciada por Obama.

A eventual vitória de Hillary será, mesmo assim, um enorme suspiro de alívio. No plano interno poderá consolidar algumas das políticas da atual Administração, como o direito à saúde e a proteção das minorias, o que já não é pouco.

Em termos internacionais, o legado de Obama é mais dúbio: se foi o anti-unilateralista que aceitou o fim da hegemonia americana, a verdade é que não foi capaz de criar as coligações multilaterais necessárias para prevenir tragédias como a da Síria. Com a vitória de Hillary Clinton, iremos provavelmente assistir a uma tentativa de reafirmação da hegemonia americana, com recurso ao que a própria apelida de “poder inteligente”, a combinação do poder militar com o chamado soft power americano. O declínio relativo dos EUA, porém, não é consequência da Administração Obama, e num mundo pós-ocidental a procura da preponderância está condenada ao fracasso.

Caso vença Trump, assistiremos à afirmação de uma linha isolacionista, que é muitas vezes, como sucedeu na presidência de George W. Bush, paradoxal sinónimo de intervencionismo militar acrescido.

O momento Obama não foi o início da era Obama, mas a América terá que reformar o seu sistema político e adaptar-se a um mundo em que já não é, por si só, uma força decisiva, mas ainda é claramente indispensável para conter o futuro que Trump simboliza. 

Antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da UE

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