Tribunal do Cairo abandonou as acusações contra Hosni Mubarak

Antigo Presidente do Egipto já não vai responder no caso dos manifestantes mortos em 2011 nem por corrupção. Acusação pode recorrer da decisão do tribunal criminal do Cairo, e a defesa pode solicitar a liberdade do ditador de 86 anos.

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Apoiante do antigo Presidente Hosni Mubarak Khaled Desouki/AFP

O antigo Presidente Hosni Mubarak, que governou o Egipto de forma autocrática durante quase 30 anos, e está a cumprir uma pena de três anos de prisão domiciliária por corrupção, já não terá de responder pela morte de manifestantes durante a revolução de 2011, que resultou na queda do seu regime, nem num outro caso em que estava acusado de suborno num negócio de exportação de gás a Israel.

O tribunal criminal do Cairo que foi encarregado da repetição do julgamento desses processos, depois de uma primeira sentença de prisão perpétua ter sido anulada com base num erro técnico, concluiu pela “inadmissibilidade” das queixas e ordenou o seu arquivamento.

Horas depois de se saber que o juiz Mahmoud Kamel al-Rashidi tinha deixado cair todas as acusações que pendiam contra o antigo general, de 86 anos, as ruas do Cairo encheram-se de polícia, que montou um cordão em torno da praça Tahrir, onde começaram a concentrar-se opositores do antigo regime, agastados com os desenvolvimentos. “Esta é a lei de Mubarak: nada de justiça para os mortos”, reclamou Ramadan Ahmed, cujo filho Ahmed foi baleado na cabeça durante um comício pró-democracia em Alexandria.

Mas a decisão também deu origem a cenas de júbilo na capital egípcia. Um enorme aplauso ecoou na sala de depois do juiz anunciar a sua decisão, e centenas de apoiantes deslocaram-se até à porta do hospital militar onde Mubarak permanece detido para saudar o ex-Presidente – que tem comparecido em tribunal sempre deitado numa maca, mas apareceu à varanda para agradecer.

Além de Hosni Mubarak, estavam acusados de conspiração para o assassínio de 239 manifestantes o seu antigo ministro do Interior, Habib al-Adly, e outros seis dirigentes do aparelho de Estado. O juiz também arquivou as queixas por corrupção contra o antigo Presidente e dois dos seus filhos, Alaa e Gamal, e ainda contra o seu amigo Hussein Salem, um empresário que fez fortuna durante o regime de Mubarak, e que seria julgado à revelia por um alegado esquema conjunto para o fornecimento de gás a Israel abaixo dos preços de mercado.

O arquivamento do processo não torna Mubarak um homem livre, uma vez que ainda lhe resta cumprir a quase totalidade da pena de três anos no âmbito de outro processo de corrupção a que foi condenado em Maio. O ex-ditador, que invocou razões de saúde para cumprir a pena no hospital militar, fez um breve comentário telefónico sobre os acontecimentos do dia: contactado pela estação de televisão Sada el-Balad, respondeu que “não fiz absolutamente nada” quando perguntado sobre a violência sobre os manifestantes. “Como nunca fiz nada de errado, fui naturalmente declarado inocente pelo tribunal”, acrescentou.

No entanto, é possível que os advogados de Mubarak venham a solicitar a sua libertação, tendo em conta que o antigo Presidente, que foi detido em Abril de 2011, já passou três anos na cadeia. De acordo com a lei egípcia, poderá cumprir os requisitos para ser libertado, uma vez que não pendem outras queixas contra si – excepto se a acusação recorrer da deliberação de tribunal do Cairo, o que é possível.

Sinal dos tempos

A situação no Egipto está muito diferente daquela que existia quando se esperava o primeiro veredicto. Depois das primeiras eleições democráticas do país, que deram a vitória a Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, as preocupações com a instabilidade económica e social e uma alegada deriva islamista do seu Governo conduziram a um golpe militar.

O chefe das Forças Armadas, general Abdul Fattah al-Sissi, venceu as eleições seguintes e iniciou um processo de perseguição da Irmandade Muçulmana. O ex-Presidente Morsi foi detido antes de cumprir um ano de mandato (se for considerado culpado dos vários crimes por que foi acusado poderá ser condenado à morte), e o seu partido islâmico foi classificada como uma organização terrorista e novamente ilegalizado, e centenas dos seus membros presos. 

Observadores internacionais e analistas jurídicos lamentaram a decisão do juiz Mahmoud Kamel al-Rashidi, que na sua opinião vai contribuir para o sentimento de impunidade dos responsáveis do antigo regime egípcio, depostos após os protestos da praça Tahrir. A absolvição e libertação de cerca de 170 polícias e agentes de segurança envolvidos nos confrontos com os manifestantes tinha já aumentado o medo dos activistas pró-democracia de que a antiga liderança estivesse de novo a ganhar influência. 

Numa entrevista ao britânico Channel 4, o jornalista egípcio-americano Sharif Kouddos, que pertence ao Nation Institute, disse que perante os últimos desenvolvimentos, “fica mais difícil ter esperança num processo democrático”. O arquivamento do caso significa que a morte de cerca de 900 manifestantes durante a revolução egípcia permanecerá “sem responsáveis nem culpados”, notou. “Objectivamente, estamos perante o retorno do autoritarismo no Egipto”, considerou.

“Estou sem palavras”, reagiu Marwan Bishara, analista político da emissora pan-árabe Al-Jazira (três jornalistas da estação de televisão foram este ano condenados a penas de sete e dez anos de prisão, num processo que organizações de direitos humanos classificaram como “uma farsa”). “Isto é uma tentativa de trazer o velho Egipto de volta e basicamente inocentar três décadas de ditadura”, comentou. “Basicamente toda a gente que esteve envolvida na violência e corrupção foi ilibada, enquanto temos na prisão centenas de manifestantes pacíficos”.

O juiz presidente do tribunal do Cairo, Mahmoud Kamel al-Rashidi, disse que o fim do processo não absolvia o antigo Presidente da “corrupção” e “fraqueza” dos últimos anos do seu mandato e elogiou os protestos de Janeiro de 2011, dizendo que os seus objectivos de “liberdade, pão, e justiça social” foram justificados.

A esta afirmação do juiz, o analista da Al-Jazira contrapõe: “Reivindicações de liberdade, justiça e democracia foram enterradas com um veredicto.”

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