Tradições do império

Nemtsov é o Kirov do nosso tempo.

Sergei Mironovich Kirov, de quem hoje ninguém se lembra, era secretário da Comissão Central do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) e também primeiro-secretário da organização de Leninegrado. Em 1 de Dezembro de 1934, foi assassinado por um militante desconhecido, Nikolaiev, protegido por Yagoda, nessa altura chefe da NKVD, predecessora da KGB.

Este crime, aparentemente inexplicável, inaugurou o “Grande Terror” de 1935-1938, em que morreram, pelo menos, 10 milhões de pessoas. Hoje está provado que Estaline o mandou matar. Porquê? Porque Estaline queria reduzir o Estado, o Partido, o exército e o povo a uma condição de obediência absoluta, eliminando qualquer possível centro de resistência ao seu poder e à sua vontade. Popular em Leninegrado e nos meios do PCUS, e ainda por cima um óptimo orador, Kirov não podia ser deixado à solta.

Não tendo a NKVD, nem o Gulag (como existia na URSS), Putin é obrigado a recorrer a uma espécie de milícias, que lembram as SA do nazismo antes de 1923, e a grupos de “segurança” indescritos que o Estado paga. Mas precisa, como Estaline, de eliminar a oposição (por fraca que pareça) para continuar a desenvolver a política, já abundantemente manifesta, de acabar com a União Europeia e a NATO e de rever a favor da Rússia o status quo, estabelecido em 1989-1991. A Rússia intervém hoje na República Checa, na Eslováquia, na Hungria (de Vítor Orban), na Grécia e até em França, para não falar da Crimeia e da Ucrânia. A dimensão e o radicalismo da estratégia de Putin exigem um clima de histeria nacionalista na Rússia e a liquidação imediata de qualquer dissidência.

Boris Nemtsov acabou com quatro tiros nas costas, porque tinha sido vice primeiro-ministro e chefe de partido; porque era conhecido e um activista; e porque naturalmente se opunha à louca e maléfica aventura de Putin. E é curioso que o próprio Putin, como Estaline, declare agora que o assassinato de Nemtsov foi um crime político, porque isso lhe permite daqui em diante descobrir conspiração atrás de conspiração e liquidar mansamente quem se atrever a contrariar os seus desígnios, à capa de um pretexto embaraçoso para o Ocidente. Alexandre Navalny, apesar de preso, declarou que Putin dera a ordem para matar Nemtsov. A lógica das coisas sugere que sim. E, por mim, acredito que a continuação da história provará que sim. Nemtsov é o Kirov do nosso tempo.

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