Texto crítico para Guebuza leva académico e jornalista moçambicanos a tribunal

Queixa não partiu do visado, mas da Procuradoria. Caso abre discussão sobre liberdade de expressão em Moçambique.

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"Não cometi nenhum crime, nem fiz nada de que me envergonhe", diz Castel-Branco João Cordeiro/Arquivo

Um destacado académico moçambicano que em 2013 escreveu no Facebook um post crítico da governação do então Presidente, Armando Guebuza, e o editor de um jornal que depois o reproduziu, vão ser julgados. O primeiro é acusado de crime contra a segurança do Estado, por alegada difamação e calúnia. O segundo de abuso de liberdade de imprensa. Incorrem em penas mínimas de um ano até dois anos de prisão e multa.

No texto, o economista Carlos Nuno Castel-Branco dizia que Guebuza estava “fora de controlo”, a criar pretextos para “suspender a Constituição” e perguntava-lhe se estaria a preparar a “fascização completa do país”.

Escrito em Novembro de 2013, foi depois reproduzido como carta aberta nos jornais MediaFax, dirigido por Fernando Mbanze, que também vai a julgamento; e Canal de Moçambique, de Fernando Veloso, não convocado por estar fora do país, por motivos de saúde.

“Questionei, em termos ásperos, a qualidade da liderança política exercida pelo ex-chefe de Estado e a direcção em que a sua liderança estava a conduzir o país. Os editores daqueles dois jornais entenderam que o assunto merecia ir a conhecimento público”, disse agora o académico moçambicano ao PÚBLICO.

O processo não foi motivado por qualquer queixa directa de Armando Guebuza – que em Janeiro de 2015 completou os dez anos constitucionalmente permitidos como Presidente e cedeu o lugar a Filipe Nyusi – mas pelo Estado, representado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

“Foi iniciado por pressão política e chega aqui por esse motivo. Segundo informações que temos de fontes fidedignas, uma parte desde caso foi ‘tratada’ pelo Partido [Frelimo, no poder]. Depois da publicação do meu post, houve enorme pressão exercida através dos órgãos de comunicação social do Estado para que a PGR tomasse conta deste caso. A maior parte dessa pressão, exercida através dos media públicos, foi acompanhada por racismo primário e violenta difamação”, afirma o economista, por escrito.

O julgamento chegou a estar marcado para a próxima segunda-feira, 3 de Agosto, mas foi adiado para dia 31, a pedido de Carlos Nuno Castel-Branco, ausente em Manchester, onde é investigador sénior honorário do Institute for Development Policy and Management.

“Perguntaram-me se iria a Moçambique para o julgamento. Não tenho qualquer dúvida de que vou. O que está em jogo não diz respeito só a mim, são questões muito mais amplas. Eu recuso-me a ser visto como um exilado político, não cometi nenhum crime, nem fiz nada de que me envergonhe. Se a PGR quer ir para diante com o julgamento, irei usá-lo da melhor maneira possível como plataforma de luta pela liberdade de expressão, de imprensa, de pensamento e debate político”, escreveu, num texto divulgado publicamente, depois de anunciada a primeira data para o julgamento.

“Independentemente do resultado, quer sejamos condenados ou ilibados, se o debate decorrer abertamente, nós e Moçambique saímos a ganhar”, escreveu ainda o académico, que é também investigador associado da SOAS – School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres; foi o primeiro director do IESE (Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique) e é professor da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo. “Uma parte considerável do apoio que tenho recebido de dentro de Moçambique até vem do seio da própria Frelimo”, disse ao PÚBLICO.

Fernando Mbanze, o editor do MediaFax, considera que os jornalistas fizeram o que deviam “na estrita observância da liberdade de expressão, da liberdade de opinião”. “Para nós, em nenhum momento há injúria, o que o texto discute são assuntos de governação” disse, por telefone. A linguagem “áspera” do texto é justificada pelo jornalista com o “contexto particular” do momento que se vivia em Moçambique quando o texto foi publicado: um clima de insegurança causado por raptos frequentes e ataques armados atribuídos à Renamo, no troço entre o rio Save e Muxungué, no centro.

“Todas as pessoas que se pronunciavam usavam aquele tipo de linguagem”, diz o jornalista, lembrando que Moçambique assistiu nessa altura a inéditas manifestações de rua, de contestação aberta ao executivo de Guebuza. “As críticas à governação eram feitas todos os dias”, recorda o editor do MediaFax.

Base legal discutível
Questionado pelo PÚBLICO, Carlos Nuno Castel-Branco afasta um cenário de acordo extra-judicial. Considera que o caso é “claramente abrangível” por uma amnistia aprovada em 2014, por acordo entre o Governo da Frelimo e o principal partido da oposição, Renamo. Mas dá duas razões para nem ele nem Mbanze terem invocado essa lei.

Em primeiro lugar, afirma, “não reconhecemos que tenhamos cometido qualquer crime, muito menos um contra a segurança do Estado”. Em segundo, “se a PGR quer ir para o julgamento vamos e lutaremos com o melhor da nossa capacidade para transformar este julgamento num exemplo de luta pela liberdade e direitos de cidadania”.

Jornalistas e líderes de opinião em Moçambique têm-se pronunciado sobre o assunto. Paul Fauvet, editor da agência noticiosa oficial AIM, defendeu na semana passada que não há base legal para o julgamento. “Os zelosos procuradores que estão a perseguir Castel-Branco e os dois editores parecem ignorar que no ano passado o Parlamento de Moçambicano aprovou uma amnistia para crimes contra a segurança do Estado” e também um novo Código Penal.

Amnistia lança petição
Tomás Vieira Mário, comentador próximo da Frelimo, mas não das posições mais ortodoxas do partido, também se demarcou dos contornos do processo. Num texto divulgado pela Civilinfo, agência de notícias sem fins lucrativos, escreveu que o post de Castel-Branco foi escrito no “exercício dos direitos à liberdade de expressão e de crítica política”, o que não se pode confundir com “atentar contra a segurança do Estado”.

Em sua opinião, se assim o entendesse, deveria ser o ex-Presidente a “defender a sua honra e reputação e exigir justas compensações por eventuais danos”. Uma sentença condenatória “revestiria as feições de punição estatal, em consequência de um delito de opinião - crime inexistente no ordenamento jurídico-constitucional moçambicano”.

No Facebook foi criada uma página – “Viva a Liberdade de Expressão em Moçambique”. Organizações de direitos humanos, académicas e da sociedade civil já manifestaram apoio a Castel-Branco e a Fernando Mbanze.

A Amnistia Internacional lançou uma petição e apelou às autoridades moçambicanas para que as acusações sejam retiradas. E  anunciou que se os acusados vierem a ser detidos considerá-los-á prisoneiros de consciência. Estes julgamentos, considera, têm uma “motivação política com o objectivo de enviar uma mensagem de intimidação a outros críticos do Governo”.

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