Ter medo das túnicas dos islamistas e das armas da polícia

Os apoiantes do AKP, no poder na Turquia, aproveitam o golpe fracassado para mostrar ainda mais quem manda, diz a jovem laica. Golpe e contragolpe, é tudo “muito assustador”.

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Os apoiantes de Recep Tayyip Erdogan, na praça Taksim AFP/OZAN KOSE

Merve nunca vai esquecer a noite de 15 de Julho de 2016, como também não esquece os dias e as noites que viveu por esta mesma altura do ano, em 2013. Há três anos, respirava-se esperança e a jovem de 33 anos, habituada a sentir-se um extraterrestre por causa das suas opiniões, sentiu-se menos sozinha. Agora, não sabe o que pensar e isso assusta.

“Estava em casa de uns amigos, junto do Bósforo. É perto da ponte onde mataram aquelas pessoas todas. Foi muito assustador, ouvir os F-16 em Istambul, os apelos das mesquitas para as pessoas saírem à rua contra os militares...”, descreve. “E agora, o estado de emergência [em vigor desde quinta-feira]. Em teoria, sei o que isso quer dizer. Mas nunca vivi em estado de emergência, não sei o que é que eles podem fazer, exigir a minha identificação, manter as pessoas presas, não sei.”

Jornalista desempregada, como tantos outros na Turquia onde nos últimos anos foram encerrados jornais e rádios críticos do poder, enquanto dezenas de jornalistas eram detidos e acusados de conspirações e atentados à segurança do Estado, já trabalhou num dos diários de maior circulação do país, o Hürriyet. “Como escrevia sobre política internacional não tinha de ir contra os meus princípios, mas os media são todos pró-AKP e há muitas pressões”, diz.  

Merve é membro do Partido Comunista, pequena formação sem representação parlamentar. Acredita que aquilo que viveu na noite de 15 de Julho foi um golpe, promovido, como diz o Governo do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), por seguidores do pregador Fethullah Gülen, ex-aliado dos islamistas no poder, actual inimigo declarado. Mas culpa antes de mais o próprio AKP, por ter beneficiado os gulenistas quando tinham um inimigo comum – as Forças Armadas, herdeiras e defensoras do kemalismo laico do fundador da República, Mustafa Kemal Atatürk.

Na verdade, afirma, todos os partidos com assento no Parlamento, da extrema-direita do MHP aos curdos do HDP, partilham responsabilidades no estado a que a Turquia chegou. Ou “se meterem com os gulenistas, a certa altura, mesmo que agora o neguem, ou negociaram com o AKP e isso é indesculpável. “Estas pessoas usam a religião e isso é muito perigoso. Para mim, o secularismo é o princípio mais importante, não se negoceia.”

No que Merve não consegue acreditar é na bondade das purgas lançadas em reacção à tentativa de golpe falhada, com mais de 60 mil soldados, polícias, professores do ensino público e privado, governadores, funcionários públicos e reitores suspensos despedidos, detidos ou colocados sob investigação, ao mesmo tempo que se encerram universidades, liceus privados, ONG e hospitais.

“Faz tudo parte do espectáculo, da demonstração de poder do AKP. Eles ficaram com medo e agora querem mostrar quem manda”, defende. “Outra coisa que não entendo, como é que eles vão substituir estas pessoas todas?”

Cervejas e túnicas

À conversa entre cervejas e cigarros (“fumo muito, eu sei”) numa das animadas transversais da sempre cheia rua Istiklal, diz que agora, no seu bairro, a uma paragem de metro da praça Taksim, aqui ao lado, tem medo de passar na rua com cervejas num saco de plástico transparente. “Às vezes, há homens de túnica que passam por mim e ficam a olhar. Nunca sei se me vão atacar”, diz. “Se até aqui nos bateram, durante os protestos do parque Gezi.”

Há três anos, Merve fez parte da multidão que protestou durante dias seguidos contra o derrube do Gezi, um pequeno parte atrás da Taksim. À medida que o Governo do AKP respondia com uma repressão cega, os protestos cresceram e espalharam-se a grande parte do país, juntando turcos de todas as origens e credos, dos sem deus, como ela, a religiosos zangados com a dureza da reacção do poder face a manifestantes pacíficos. “Foram tempos de muita esperança, parecia uma revolução, mas acabaram.”

Não são só os islamistas rigorosos que assustam, a polícia e os militares também não inspiram confiança. “Se te atrasares avisa, não quero ficar ali parada por causa da segurança”, pedira, depois de marcar encontro diante do Consulado Francês, mesmo no fim da Istiklal, a chegar à Taksim.

Merve ainda se lembra de algumas palavras de português – viveu em Lisboa, onde estudou no programa Erasmus – e chegou a pensar viver em Portugal. Agora, não quer deixar a Turquia, ao contrário de muitos amigos. “Quero ficar e lutar. Sei que é muito difícil, mas não quero fugir, amo este país”, diz a jovem, nascida na cidade turística de Antalya, na costa do Mediterrâneo, e há 15 anos a viver em Istambul. “Talvez seja por ter nascido numa cidade muito aberta, toda esta religião no espaço público me mete medo.”

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